Toda vez que algum de seus colegas do curso de filosofia falava sobre Zeitgeist imaginava dezenas de crianças morrendo no Nepal. Sandro foi o primeiro a deixar o bigode, o primeiro que surgiu com o papo místico de reaver a essência do ser humano, enquanto escutava música indiana ou praticava meditação, só para exacerbar seu pacto cafona com a cultura oriental. De repente, Sandro não estava sozinho, sua capacidade de arregimentar pessoas era encantador, quase como se entre uma noitada e outra entupida de ácido lisérgico, todos em sua volta tivessem descoberto o terceiro olho. O grupo começou a dividir o mesmo apartamento, uma ocupação abandonada no centro que recebia sempre novos pupilos desesperadamente em busca de uma utopia, ainda que passassem mais tempo ruminando o clima da época do que efetivamente vivendo-o. Tratava-se de um transe entre a vontade de experiência e ausência de poder.
Logo descascaram parte da pintura da parede e preencheram o espaço com cores fortes e móveis abandonados, enquanto Sandro estimulava que cada um descobrisse seu talento natural, de modo que foram emergindo pouco a pouco danças desconcertantes de pouca ou nenhuma genialidade. Como bons estudantes de filosofia, vários usavam da poética do aleatório para se expressarem, criando frases como "círculos verdes sobre os cantos do amanhã", "natas douradas no desnecessário do saber", "gotas de inexistente soltas no espaço". Espalhavam pelos quartos e salas como se fosse ensinamentos metodológicos. Ninguém entendia coisa alguma e também não reclamava, por isso eles preferiam ditar a falta de sentido como ápice da lucidez interna, sempre conclamando sobre outro plano existencial, outro plano espiritual, com cores funcionando como melodias, guinadas de ritmos, uso do desuso. A maioria só durava uma semana no apartamento e o próprio Sandro mal conseguia acompanhar seus pensamentos.
Escutavam Syd Barrett todos os dias e organizavam orgias semanalmente. O apartamento já existia há dois anos e estava com uma configuração mais estabilizada, sem tantas idas e vindas, o que de certa maneira contradizia o ímpeto inicial de movimento. As roupas estavam mais exageradas, também mais sujas, alguns foram empestados por piolhos, bichos de pé, até carrapatos e o chão estava coberto de cabelos de todos os tipos e partes do corpo. Sandro sabia que o seu sonho não duraria para sempre, sabia até que não duraria nem mais um ano. Era preciso acabar, pois os próprios loucos estavam se traindo. Syd havia sido, enfim, expulso da banda. As paredes foram perdendo a cor, o apartamento estava ficando vazio, servindo apenas de depósito de coisas deixadas de lado. Sandro assim terminou seu projeto, tomando o esquecimento como fuga de um novo tempo. Não queria participar. Ficou sozinho até desaparecer.
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