sábado, 25 de fevereiro de 2012

Encenação e escapismo

Nos primórdios do curso de jornalismo, quando escutei pela primeira vez o significado de mise-en-scène, provavelmente na mesma época em que estive obcecado por Eisenstein, numa tentativa obstinada de entender seu conceito de montagem intelectual, imaginava que ambas as frentes defendiam um cinema cujos mínimos e sutis elementos da cena eram apresentados numa síntese / explosão, fortalecendo planos e sequências, com o objetivo último de adensar a textura do próprio filme. Desde então, contudo, passei a perceber mais claramente produções em que toda vaidade era direcionada exclusivamente para um elemento: seja uma direção de fotografia charmosinha que vira grife no cinema nacional, seja a dispendiosa e inabalável direção de arte, com figurinos de época, maquiagens insalubres ou, os mais detestáveis, as películas motivadas apenas para que os atores narcisisticamente afirmem seu talento. É o caso de A Dama de Ferro, de alguma diretora qualquer que pouco importa, filme em que Meryl Streep interpreta a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, desenhada já bastante idosa, frágil, demente e solitária, não apenas para despertar uma condescendência do público, mas no intuito de facilitar a estratégia também demente da edição. Cada cena mostrada nos flashbacks da personagem confusa, numa construção mnemônica estúpida, é interrompida por um lance de total irrelevância, como se o filme escapasse de si próprio o tempo inteiro para que Meryl pudesse, enfim, brilhar na frente das câmeras. A política aqui é absolutamente reduzida à pantomima.

A pior consequência disso é que A Dama de Ferro esconde todo contexto histórico dentro da encenação de Meryl Streep, não com o interesse íntimo e desmistificador que levou Sokurov a fazer a trilogia Moloch, Taurus e O Sol ou mesmo Stephen Frears a realizar A Rainha, mas tentando instaurar um falso e nojento feminismo que coloca Thatcher como firme num mundo dominado por homens, estimulando uma noção epidérmica da situação, vez ou outra obrigando o espectador a demonstrar simpatia quando ela pega seus DVDs para assistir alguma coisa. Definitivamente, não existe a mulher que serviu de inspiração para as músicas de protesto do The Clash, o seu autoritarismo sempre vem rodeado de "essa é a cena que vai render o oscar de melhor atriz", impossível lembrar que Greenaway fez O cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante encarando os olhos da cobiça dela, não temos ideia que a infâme defendia que o mundo estaria menos estável e mais perigoso se as potências não mantivessem suas armas nucleares, que discursava ressaltando a ganância capitalista como um bem, que obrigava os pobres a trabalharem mais para pagarem as contas do país, que associava em termos públicos o excesso de lucro com a respeitabilidade moral, que basicamente criminalizou a ação de sindicatos, esmagando a consciência libertária dos trabalhadores ou mesmo que, recentemente, pediu a liberdade de Pinochet por ele estar velho, fraco e doente. Não à toa, em 2002, ela foi recomendada por seu médico a não falar mais em público, também pudera, estava já confundindo a Guerra das Malvinas com os conflitos na Bósnia. Para o filme, isso parece o mais importante, daí quanto mais vemos Meryl, menos vemos Thatcher.

A Dama de Ferro nos induz fragilmente a uma identificação inexistente, até porque as alucinações de Thatcher com o marido são constrangedoras, entre uma lembrança e outra, ela está arrumando as coisas dele, recém-falecido, para se distanciar definitivamente de seu fantasma e a partir de cada toque num objeto, somos levados a diferentes momentos de sua vida. Argh! Sim, rola explosão de luz ghost quando ele finalmente vai embora, de modo que a sensação que fica ao final da sessão, além do gosto ruim na boca, é a de que acabamos de assistir a um ensaio em looping de Meryl Streep ganhando o papel, como se o filme sequer tivesse sido feito. Cineastas como Stephen Frears, Derek Jarman e Ken Loach estavam na frente na ala dos críticos de Thatcher, contrariando a sua mão de ferro que tratava a cultura como uma espécie de dissidência que não deveria ser estimulada pelo governo, em especial se tocasse em temas como homossexualidade, lutas camponesas, processos de independência. Sobre o período, Loach comenta: "Fiz uma série de documentários chamada A Question of Leadership que nunca foi exibida sobre a cumplicidade (e não uma conspiração articulada) entre os líderes sindicais e Thatcher - a colusão no sentido de que os líderes sabiam que estavam suprimindo a militância de seus próprios membros. Na década de 1980, o que deveria ter sido a liderança de esquerda foi finalmente revelado como de direita. Também tinha o filme De Que Lado Você Está?, sobre a greve dos mineiros, que era apresentada nas notícias de maneira oposta ao que realmente estava acontecendo, quis registrar a brutalidade da polícia e o subterfúgio do governo".

Um comentário:

Pedro disse...

Vi ontem A dama de ferro e é bem isso. Lembrei de Elizabeth (o 1 e o 2), o de Cate Blanchett. O filme esvazia completamente Thatcher enquanto política e pensadora, e nos deixa, bizarramente, com a "diva" (????): visual esquisito mas impactante, voz empostada, discursos inflamados, respostas geniais. Não importa o que ela defende, mas o estilo com que defende (e ataca). E um feminismo falso, perverso, que torna irrelevante justamente o que ela pensa em detrimento do que, supostamente, ela sente, quando ela deixa tão claro, na cena do médico, que pouco se lixa para emoções. Pra criar empatia com a dama de ferro, eles a amolecem, a transformam numa jovenzinha idealista, numa MULHER de fibra, numa velhinha senil e adorável. Reacionário sob todos os ângulos. Uma pena, talvez um dia façam um retrato mais compreensivo e inteligente de Thatcher...