Ao longo de pelo menos quatro décadas, as indústrias cinematográficas dos Estados Unidos e em menor escala do Reino Unido apostaram na produção de filmes, cuja referência cultural estava atrelada intimamente aos centros econômicos, ainda que o consumo devesse acontecer - e acontecia - de maneira massiva em diferentes periferias do mundo. Os produtos audiovisuais vinham com uma capa de universalidade, baseando seus personagens nos arquétipos de Joseph Campbell, introduzindo-os numa história simples, mastigada, em que se traça tranquilamente um percurso do herói. No entanto, essa proposta deixou de ser o modelo exclusivo de negócios do cinema comercial, pois nos últimos anos, a posição etnocêntrica passou a compartilhar da expansão comercial baseada no multiculturalismo, movimento que fica bastante claro com Quem quer ser um Milionário (Reino Unido, 2008), dirigido pelo britânico Danny Boyle. A produção vencedora de oito Oscar faz uma releitura videoclíptica da estética dos filmes de bollywood – indústria de cinema da Índia – criando uma caricatura ocidental dos valores e símbolos de uma cultura subalterna. O interesse aqui é dar uma dimensão identitária que procura transpassar, no campo da imagem, tanto o ponto ideológico de onde se fez a leitura como do fenômeno lido, quase criando uma obra-fetiche que fala um pouquinho em hindi, que usa uma trilha sonora local e se vende dizendo que o roteirista até visitou o país asiático três vezes. Tudo numa cor extremamente saturada.
O filme acompanha através de constantes flashbacks, a jornada do jovem Jamal que trabalha servindo chá em uma empresa de telemarketing, depois de passar por uma infância marcada por experiências, cômicas ou melodramáticas, de miséria e violência. O sonho do protagonista aparece alinhado ao princípio do capitalismo neoliberal, que coloca o sucesso como uma realização individualista, possibilitada exclusivamente graças a uma espécie hipócrita de perseverança. Na mesma pegada dos que se inscrevem no Big Brother como o grande projeto de suas vidas, numa mistura de ânsia financeira e vontade de se tornar uma celebridade, Jamal participa do popular programa de TV Quem Quer Ser um Milionário? e ainda que inicialmente seja um competidor desacreditado, vai encontrando respostas para as perguntas em fatos de sua vida. Plim, plim. Além da óbvia ironia da situação criada por Boyle, colocando a pobreza quase como um dom do conhecimento, o perigo já não é o de negar as diferenças, mas o de apropriá-las de forma instrumental para referendar um autoridade colonial. A cultura indiana é “revelada” ao mundo pelos olhos dos ingleses, reforçando clichês e amadurecendo diferentes contornos de dominação. Afinal, trata-se de uma assimilação antropofágica despolitizada, fazendo o multiculturalismo se transformar numa mercantilização da alteridade, um empacotador de particularidades e, portanto, uma ferramenta contemporânea de reordenação e administração do consumo cultural a nível global.