sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Revista alemã publica 160 mil capas diferentes para a mesma edição

Retirada do Portal de Comunicação 'Comunique-se'

Cada exemplar da revista mensal Cicero que chegou às bancas da Alemanha nesta quinta-feira (22/11) é uma peça única. A edição deste mês da publicação, que se autodenomina a "revista para a cultura política", saiu com tiragem de 160 mil exemplares. Cada um deles tem uma capa diferente. Para experimentar o projeto de publicidade “imagens do ano 2007”, a redação teve acesso ao acervo de imagens da agência Reuters do ano inteiro.

"Criamos algo que não tinha sido feito até agora. O que nos fascinou foi o contraste entre o fluxo informativo de imagens e o momento único capturado por uma fotografia", afirmou Martin Pfaff, gerente da Editora Ringier, proprietária da Cicero, ao apresentar o último número.

Onze mil personalidades alemãs das áreas de política, economia, imprensa e marketing encontrarão nas caixas de correios um exemplar da Cicero com sua própria foto estampada na capa. A publicação premiou ainda 500 leitores com a chance de encomendar seu exemplar com a foto que quisessem impressa na capa.

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Faltay, compra pra mim uma revista dessa. A capa tu escolhe.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Like bacon and eggs

Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly

(Publicado originalmente no Dissenso)

Depois de assistir a Cantando na Chuva (EUA, 1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, em maio desse ano (2007), me deparei com uma série de questões já pontuadas no ensaio anterior, referentes à postura que uma obra de arte (ou o conjunto delas) assume diante de um repertório pessoal – podendo causar diferentes reações, de acordo com o estágio de conhecimento, experiência e discurso cinematográficos impressos em sucessivos momentos de um mesmo espectador (podendo causar, inclusive, diferentes ou complementares reações de acordo com o estágio emotivo, físico, lisérgico, etc…). Assim, a presença de alguns filmes e a ausência de outros na nossa memória, além do senso comum, do conjunto de textos acadêmicos, teóricos, jornalísticos; das viagens e pessoas que conhecemos, dos comentários profundos e inúteis ao qual tivemos contato, entre mil outros aspectos interferem não apenas numa concepção ampla sobre o cinema, mas também na construção valorativa para a película seguinte. Algumas permanecem sólidas, outras se desmontam em pedaços. Todas as obras recentemente vistas serão dimensionadas a partir do repertório construído por cada um até então – para além da temporalidade da própria obra. Tornam-se eqüitativamente importantes o contexto original do filme X – e em alguns casos isso se perde – e o momento em que esse filme X passou a fazer parte do imaginário do espectador contemporâneo Y, levando em conta que esse espectador pode tanto consumir a atualidade, como entrecruzá-la com referências distantes temporal ou espacialmente, através do amplo – e cada vez mais simples – acesso dado pelas novas tecnologias. Um singelo clique num mouse nunca foi tão significativo.

É como se o estigma (ou valor) sobre um filme antigo não seguisse apenas o seu legado histórico, mas se firmasse a partir da negociação entre a cronologia fixa da película e a cronologia em processo do espectador (se adequando ao repertório de cada um). Não se pode pensar em uma das cronologias e excluir a outra. Qualquer discurso que o faça corre o risco de cair nas seguintes armadilhas: ou irá soar idealista ao resgatar e ressaltar um conjunto de elementos distantes, numa preocupação quase hermeneuta, imaginando que a atualidade não está imbricada na nossa cognição ou irá soar excessivamente ingênuo, a-histórico e preconceituoso diante de uma possível totalidade contextual. De fato, diante dos musicais me encaixava perfeitamente no segundo erro: falava dessas produções como um todo, apenas pelos quatro ou cinco filmes contemporâneos que tinha tido acesso (e falava firme, sem hesitações). Essa verborragia precipitada me despertou para a necessidade dessa negociação entre dois tempos – com perdas e ganhos para ambos os lados. As obras não estão apenas situadas diante das obras ao qual são contemporâneas, como pontuei no ensaio sobre Limite, mas também, das que se tornam contemporâneas através da intermediação de um espectador. Ou seja, qualquer conjunto de filmes, de qualquer época ou qualquer lugar pode ser colocado em diálogo dependendo dos argumentos apresentados. Toma-se como elementos opostos (mas que se apontam) o conhecimento prévio sobre os objetos escolhidos e a fundamentação sutil e particular para uma nova abordagem. A relevância ou não dessa convergência espaço-temporal, desse resgate contemporâneo como uma nova forma de disseminação e contestação de sentidos será re-discutido a posteriori e de preferência não só por mim. Toda uma geração está envolvida nesse processo de re-significação (e cada vez mais envolvida).

A partir disso e antes de prosseguirmos, talvez seja necessário assumir (e explicar) a existência de certo preconceito meu – nesse exato momento já moderado – diante do gênero musical (e detesto a palavra-limitação ‘gênero’, apesar de nesse caso me parecer inevitável). Também é preciso ressaltar que não se trata daquele velho receio pontuado ano após ano por críticos de cinema, afim de justificarem essa antipatia inicial do grande público; antipatia tratada e sintetizada como presunção ignorante no artigo Cantando e Dançando à saída do cinema, de Ruy Castro: “basicamente, fazem-se duas acusações aos musicais: são filmes chatos porque, no meio de uma cena, o sujeito começa a cantar e são irreais porque, neles, qualquer marinheiro ou mata-mosquito dança e canta como um profissional” (Castro, 2006, P. 19). No meu caso específico, o preconceito não se fundamentava em nenhum desses argumentos até porque o recurso de ruptura climática (ou exposição de um clima interior) por si, mostra o quão ligados à liberdade criativa estão os musicais – há um desprendimento notável de qualquer realismo fiel, de qualquer continuidade óbvia quando um mata-mosquito grosseiro se transforma num bailarino estonteante e, em seguida, volta a ser o velho mata-mosquito grosseiro. Meio o que acontece em Sete noivas para sete irmãos, de Stanley Donen (EUA, 1954): aqueles sete caipiras nunca seriam ótimos dançarinos… e são. Ponto. Admiro essa liberdade recorrente nos roteiros dos musicais; esse contrato diegético implícito e silencioso entre o cineasta e o espectador. A pontuação dos críticos na tentativa de explicar o porquê das pessoas não gostarem de musicais, pelo contrário, sempre me fascinou um pouco. Talvez influenciado por algumas irônicas cenas do seriado Six Feet Under ou pelo clipe It’s oh so quiet, da Bjork, dirigido pelo Spike Jonze. De fato, me interessei primeiro pelos pequenos desvios contemporâneos que brincavam e se apropriavam do gênero, remodelando-o ao bel prazer de suas propostas narrativas. Desvios (homenagens?) maiores, como Amores parisienses (FRA, 1997), de Alain Resnais e Todos dizem eu te amo (EUA, 1996), de Woody Allen só viriam bem depois. Se aparecessem antes não teriam efeito algum dentro de minha cronologia difusa. Eu precisava ser conquistado em passos curtos.

Meu preconceito (como a maioria deles o é) partia de uma pura e simples ignorância, afinal sequer possuía uma base vasta de filmes vistos desse gênero (sic): o musical sempre me pareceu bobo, pouco engraçado e romântico-meloso demais (como minha grande amiga Lia disse: “é do seu feitio, Rodrigo, assistir um filme chamado ‘Amor, sublime Amor’ e dizer que é um saco”). Assumo que tenho uma queda mais pelo estranho amor que pelo sublime amor. Naturalmente essa aversão retardou meus passos nesse campo. Nada me impedia de assistir Cantando na Chuva anteriormente, além da pura falta de interesse – fundada pela influência rasteira e por enquanto negativa de meu próprio repertório meia boca. Até então, tinha visto Moulin Rouge e Chicago (e os ainda mais jovens estão assistindo High School Musical, Dreamgirls e Hairspray), achava o primeiro um desperdício de bons atores num baile Pop e o segundo uma realização tecnicamente eficiente entupida de momentos constrangedores (Richard Gere dançando, por exemplo). Sinceramente não entendia o saudosismo selado envolta dessas produções, afinal em mim não havia nostalgia alguma. Vi as duas obras isoladamente e não como uma retomada de ‘um passado glorioso, esplêndido, magnífico’ como comentava repetidamente o crítico Rubens Ewald Filho na festa do Oscar 2003 (sic, sic, sic). Às vezes, eu sinto que o mesmo vício de apontar para trás e dizer que tudo foi melhor, acontece quando se pega a obra presente e a aponta para trás dizendo que ela é tão boa quanto. Eu entendo o charme do jogo de referências, mas esse é um vício que pode surgir tanto fundamentado como numa afirmação solitária e vazia. Um risco.

De qualquer maneira, temos que perceber também que a perspectiva de isolamento – não comparativa com qualquer outra época – é recorrente em boa parte da platéia jovem contemporânea que não vivenciou uma produção intensa dos musicais, nem ouviu falar em nomes como Fred Astaire (e sua classe), Busby Berkeley (e sua extravagância) ou Cyd Charisse (e suas pernas). Há um ano, me incluía perfeitamente nesse grupo. É um processo natural e não precisamos lamentar. Obviamente, já tinha assistido Hair e não me deixava convencer por toda sua aura de afetação datada (pois é, já superei minha fase neo-hippie juvenil). Além desses, conhecia um ou outro trabalho de Carlos Saura – e ainda permanecia um pouco indiferente, mal lembrava de Grease, Flashdance e outros ‘sessão-da-tarde’ e fazia o favor de encaixar o The Wall, Hedwig and the Angry Inch, Velvet Goldmine e Dançando no Escuro (e não só esses) numa modalidade aparte. Dentro do preconceito plenamente estabelecido, os filmes citados, em especial o de Lars Von Trier nunca poderia ser classificado como um musical. Primeiro: eu o adorava. Segundo: como 80% das pessoas chorei horrores ao final. Terceiro: não pretendia viver nesse paradoxo do gosto e do não-gosto simultâneos (ainda que essa produção tenha perdido um pouco de seu impacto depois de Não Matarás, de Krzysztof Kieslowski e eu de fato tenha entrado nesse paradoxo). Tratava-se de uma lógica ambígua mesmo: via-me extremamente encantado por diversas cenas musicais inseridas em filmes não-musicais, mas os musicais-musicais (ou pelo menos, os que eu tinha visto até então e lembrava) me aborreciam ou entediavam profundamente. Profundamente.

Cantando na Chuva, entretanto, se impôs de maneira brutal diante de meus olhos previamente desacreditados. Até então cantarolava singing in the rain sarcasticamente por conta de Laranja Mecânica (EUA, 1971), de Stanley Kubrick e apesar de ter uma vaga idéia da cena original preferia ignorá-la (a homenagem surgira antes do homenageado, o que se torna cada vez mais comum e confirma a idéia de negociação entre cronologias). Em maio desse ano (Edit: 2007), depois de assistir à obra de Gene Kelly e Stanley Donen, me entreguei a uma auto-crítica onde foram reveladas ignorâncias sobre a história e os desdobramentos do estilo e desfeitas as cristalizações conceituais taxativas: a cada ironia ou passo de dança, um caminho para dezenas de outros filmes começava a se formar. E engraçado que esse percurso no tempo, em busca do conhecimento histórico é marcado essencialmente pela descontinuidade: como se a cronologia ‘original‘ fosse recortada em mil pedaços e re-montada, aos poucos, pelo desbravador contemporâneo a partir de cada novo-filme-antigo visto. A ordem de revelação de qual será assistido antes ou depois se torna totalmente arbitrária, a não ser que adotemos um metodismo acadêmico. Pensava no gênero em questão de maneira extremamente limitada diante das variantes possíveis. Entre tantos filmes para conhecer, os musicais poderiam ser simplesmente os últimos da fila. Passei anos alimentando esse receio opressivo, mas mesmo depois de todo preconceito estabelecido, firmado, enraizado a 400 mil metros, Cantando na Chuva criou seu próprio paradigma e ditou suas próprias regras (uma unanimidade sim – apesar de na época de seu lançamento ser considerada uma obra abaixo de Sinfonia de Paris, vencedor do Oscar em 1951). Em quinze minutos de filme, qualquer espécie de aversão já tinha se esvaído e minha valoração estava plenamente sob controle. Provavelmente não teria buscado os musicais e seus contextos sem esse primeiro passo. E aí que reside, para mim especificamente, a maior importância dessa obra.

O modo como se estrutura o sistema cinematográfico americano sempre é lembrado, enquanto conjunto – e admito: essa é uma afirmação grosseira – pela presença marcante do produtor a frente da obra – vide a influência de Arthur Freed ou mais recentemente de Harvey Weinstein – e por sua lógica estritamente comercial e pouco artística – e não que esses dois elementos sejam necessariamente opostos (essa história de colocar dinheiro e arte em lados opostos, quase como inimigos mortais às vezes me parece um tanto infantil). Cantando na Chuva representa uma época em que Hollywood sabia brincar consigo mesma, sabia utilizar recursos típicos e criticá-los em uma mesma instância – ainda que para atingir os objetivos comerciais de sempre (até porque os musicais eram produções caríssimas que precisavam de algum retorno para se manterem em produção constante – e a MGM mantinha). Por sinal, o gênero em questão é especialista em construir sua diegese dentro do próprio show business, se utilizando sempre de uma ironia metalingüística ou da exposição de plena-consciência sobre si. Tudo bem que no filme de Gene Kelly e Stalen Donen há uma cordialidade imensa, pois não existe uma pretensão em revelar sujeiras de bastidores, mas apenas tirar um bom sarro e debochar de sua própria condição (coisa que High Society (EUA, 1956), de Charles Walters faz muito bem). As críticas sérias a Hollywood – produzidas fora de Hollywood – às vezes soam como outsiders, se estigmatizam demais como repúdio ao esquemão e terminam se formatando enquanto tal. O filme de Gene Kelly e Stanley Donen não. Estão inseridos dentro de um sistema produtivo e ao mesmo tempo jogam com esse sistema, através do humor e da ironia – e certa leveza tonal. Cantando na Chuva brinca com tudo que representa ao mesmo tempo em que também as valoriza.

Há deboches de todos os tipos e todos são auto-reflexivos. Dentro daqueles estúdios enormes qualquer história cretina levemente modificada pode se transformar num belo conto hollywoodiano. Com falso glamour, mas glamour. Isso é Hollywood: um boteco decadente que se passa por um conservatório de Belas Artes, um dia péssimo que se passa por um lindo dia se sol, uma narrativa trash que se passa por um épico monumental. Isso é Hollywood: um produtor que entra no set de filmagem e ordena que o suposto filme épico se torne um musical. E não poderia ser de outra maneira. Na história do filme, a atriz Jean Hagen interpreta Lina Lamont, uma estrela gasguita do cinema mudo que, com o advento do cinema sonoro, precisa ser dublada pela iniciante Kathy Selden, personagem interpretada por Debbie Reynolds. Entretanto, “o que poucos sabiam é que, na verdade, a voz de Debbie Reynolds dublando Jean Hagen é que fora dublada. Por quem? Pela cantora Betty Royce e pela própria Jean!” (Castro, 2006) , nos revela Ruy Castro (e todo seu detalhismo biográfico) em seu desmistificador artigo ‘Uma serenata ao maior musical do cinema’. O trabalho da atriz Jean, geralmente confundido pelos espectadores, é um ótimo exercício para diferenciarmos a personagem irritante da atuação genial. Cantando na Chuva não é outra coisa, senão uma caricatura, uma paródia de si mesmo e de toda cultura de celebridade na qual se funda. É como se Gene Kelly com aquela sorriso imenso apontasse o dedo para si, para toda equipe técnica, especialmente para Debbie Reynolds e para alguns de seus espectadores e chamasse a todos (inclusive ele mesmo) de idiotas. De maneira bem sutil e charmosa é bem verdade – ninguém chega a se ofender – mas idiotas. Como os pudores são menores, fazem piadas-piadas-piadas e riem juntos-juntos-juntos. Tudo é divertido. Muito divertido. Logo no início do filme, há um comentário sobre o casal de astros principais que funciona como uma parábola de todo esse pensamento: “Ladies and gentlemen, when you look at this gorgeous couple, it’s no wonder they’re a household name all over the world… like bacon and eggs. Lockwood and Lamont!“. Para além do humor nonsense, essa frase resume – novamente de forma irônica – toda arbitrariedade comparativa de um sistema produtivo altamente etnocêntrico, sistema que tende a afirmar sempre que possível sua importância diante da história do cinema mundial. Hollywood gosta de mostrar não apenas sua face, ostentar não apenas sua influência – gosta de dizer, de assegurar, de se comparar a todo o momento (colocando-se como centro, óbvio).

Engraçado que ainda continuo achando a grande maioria dos musicais bobos e melosos-românticos demais (exceto, talvez, alguns como Sapatinhos Vermelhos (UK, 1948), de Michael Powell e Emeric Pressburger). O próprio Cantando na Chuva é bobalhão e excessivamente romântico-meloso, entretanto, já não enxergo isso como um problema a priori. Talvez eu tenha evoluído, de fato, no acordo diegético entre o cineasta e o espectador; tenha criado a pré-disposição para musicais (que antes, se dava como uma anti-disposição). Mas, além disso, há um detalhe ainda oculto. Nas produções contemporâneas, de Moulin Rouge a High School Musical, a montagem se porta de maneira extremamente agressiva, com cortes exagerados e exagerados. MTV pura. Não que eu seja contra esse tipo de edição, pelo contrário, não há preconceito algum nesse caso, afinal me criei nessa estética gravando videoclipes durante toda adolescência. Mas em Cantando na Chuva (e vários outros musicais entre as décadas de 30 e 60), a câmera deixa os atores dançarem, representarem e cantarem, porque de fato são dançarinos, atores e cantores – excepcionais nos três âmbitos. Essa me parece a primeira grande diferença. A câmera e o tratamento dos planos ao invés de esconder, se preocupar ou trucar uma inabilidade do ator tornando-o aparentemente hábil (o que também tem lá sua magia), toma uma postura de contemplação do ato. Assim, boa parte da responsabilidade é lançada ao intérprete (e ao diretor-coreógrafo, não esqueçamos), enquanto o enquadramento simplesmente busca o olhar mais privilegiado, uma otimização do show. O que já é um deleite aparte, pois convenhamos que alguns atores abusam do talento (o número de O’Connor ‘Make ‘em Laught é genial). E só para não fugir do clichê-mor é preciso dizer que Gene Kelly abusa mais que todos. Suas apresentações transpõem a idéia de virtuosismo técnico tão cobrada dos dançarinos, passando a explorar uma afirmação de vigor literalmente físico. Poucas vezes a desenvoltura, a técnica e a força caminharam tão bem a partir de um único corpo acrobático.

Um segundo ponto é a performance do elenco e a ação dos executivos sobre a obra. Gene Kelly é um produto e um ator / dançarino, Zac Efron é, por enquanto, apenas um produto. Sinto-me até meio idiota comparando qualidades artísticas tão discrepantes. No caso do primeiro a intervenção da figura do produtor se dá de maneira estrutural ao reunir os melhores profissionais da área para trabalharem juntos, e de maneira artística, afinal Arthur Freed é responsável pelas letras de quase todas as canções de Cantando na Chuva, canções escritas na transição do mudo para o sonoro num pedido / ordem de reciclagem da própria MGM. Foi daí que nasceu o roteiro. Isso deu uma liberdade enorme ao que Gene sabe fazer de melhor. Já no caso do segundo, a empresa Disney funciona como um Deus moral e publicitário que modifica do roteiro à escolha do diretor, cortando cenas ao bel prazer do marketing da franquia até se focar no elenco a partir de padrões meramente estéticos. E aqui não podemos esperar que Zac mostre o que sabe fazer de melhor, além de pentear seu cabelo milimetricamente sem erros ou aparecer num evento mais maquiado que a Cate Blanchett. Em terceiro lugar (quase que caio naquela ‘e não menos importante’), vale lembrar que o filme de Stanlen Donen e Gene Kelly resume muito bem uma característica dos musicais de sua época, no que se refere a como a cena é pensada para a dança e para a câmera, como os dançarinos se conectam diretamente com os recursos cinematográficos, sem menosprezarem seu próprio virtuosismo técnico. Isso só acrescenta. É importante notar também que, durante algumas apresentações cantadas, as personagens interpelam diretamente para a câmera, diretamente para o espectador, como se saíssem por um segundo do universo ao qual estão inseridos para fazerem um adendo urgente – que precisa ser feito e não pode esperar (como os que eu fico fazendo insistentemente através desses parênteses).

Por fim, assistir Cantando na Chuva será sempre como assistir, simultaneamente, três contextos históricos do filme-musical: o contexto da diegese fílmica, o contexto da produção do próprio filme e o contexto atual do espectador. Ou melhor, é assistir simultaneamente o primeiro contexto sob a ótica e desvios do segundo; o segundo sob a ótica e desvios do terceiro e o terceiro sob o grande dilema de analisar a si mesmo. O primeiro, vinculado à história do filme se passa num momento muito emblemático para o cinema no final da década de 20 do século passado: os anos do advento do som. Naturalmente são retratados anseios e mil questões, ainda que de forma caricatural, exagerada, referentes a esse processo: atores que não se adequaram; cineastas que não se adequaram; receios quanto à vulgaridade do novo recurso. É uma mudança brusca no modo de se fazer e pensar filmes por mexer, estritamente, na estrutura da linguagem. A passagem do mudo para o sonoro foi tema de diversos estudos por parte de cineastas e teóricos – entre eles Eisenstein, Pudovkin e Rudolph Arnheim. Assim, o filme está repleto de cenas em bastidores de estúdios inserindo esse espaço oculto (hoje já tão banalizado pela publicidade): fica uma sensação de alargamento do recorte da tela, no intuito de alcançar um recorte mais amplo. E quando Hollywood aprendeu a falar já começou cantando. No segundo momento, em 1952, quando o filme foi concebido e lançado, Hollywood estava no ápice de sua Era de Ouro dos musicais – iniciada depois da Segunda Grande Guerra depois de “um estudo que indicava que as comédias musicais eram as favoritas entre todos os tipos de histórias, de modo que a MGM reviveu o gênero. Com Gene Kellye e Fred Astaire como principais dançarinos, desafiou a concorrência da [recém lançada] televisão com belas e sofisticadas produções musicais em cores, duas e às vezes três das quais figuraram anualmente entre os maiores sucessos de bilheteria da indústria” (Sklar, 1975, p. 329). E repito: essa idéia de colocar dinheiro e arte em lados estritamente opostos, como se a presença do primeiro invalidasse a existência do segundo (e vice-versa) pode se tornar, dependendo do contexto aplicado, um conceito deveras equivocado. Ou melhor, um pré-conceito (rá).

Esse momento próspero em Hollywood prosseguiu firme antes decair no final da década de 50 / começo da década de 60. Até então foram produzidos os ditos melhores filmes do gênero de todos os tempos como Marujos do Amor (1945), Desfile de Páscoa (1948), Um Dia em Nova york (1949), Sinfonia de Paris (1951), o próprio Cantando na Chuva (1952), A Roda da Fortuna (1953), Cinderela em Paris (1957), Meias de Seda (1957), My Fair Lady (1964) ou A Noviça Rebelde (1965) entre outros (para mais detalhes dos bastidores, leia o conjunto de artigos de Ruy Castro que formam “Toró Mágico: Cantando na chuva”. Nada que eu tente escrever aqui vai chegar perto do trabalho de apuração que ele fez: quase chamando Gene Kelly de ‘brother’). No terceiro momento, hoje, só consigo enxergar que o musical se tornou uma seqüência de tentativas ‘produto pelo produto’ com toda uma apelação teenage: onde não importa a técnica, a história, as piadas, o cinema, nada. Basta uma seqüência de rostos bonitinhos, cortes, cortes, cortes, revistas, celebridades, adolescentes enlouquecidos. A única exceção são diretores famosos que resolvem brincar com o gênero, como os já citados Alain Resnais e Woody Allen e mais recentemente Tim Burton. O resultado nem sempre é dos melhores. Obviamente posso está sendo precipitado (e novamente preconceituoso) por desconhecer e não buscar (por pura falta de interesse) uma série de lançamentos, mas High School Musical é o símbolo maior dessa opinião. E, infelizmente, vi não só essa produção como sua sequência desastrosa. Há um vazio desconcertante. Só de pensar que estão preparando o número três da franquia, que milhões de dólares estão sendo investidos nessa bobagem, passo a sentir que aquela nostalgia ao qual me referi ironicamente no início do texto começa a me abater também: mas diferente do Rubens, não de maneira otimista.

Cantando na Chuva. EUA, 1952. Roteiro: Adolph Green e Betty Comden. Direção: Gene Kellye e Stanley Donen Produtor: Artur Freed. Elenco: Gene Kelly, Jean Hagen, Donald O’Connor, Debbie Reynolds, Cyd Charisse. 103 minutos.

Para Baixar: Cantando na Chuva

Referências bibliográficas:

CASTRO, Ruy. Um filme é para sempre. Cia das Letras, 2006.

SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo, SP: Cultrix, 1975.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

terça-feira, 13 de novembro de 2007

jornalismo-ufpe@yahoogrupos.com.br

"Concordo com Nane quando diz que para dinheiro todos se empolgam"

¬¬

frase lugar-comum do dia.

será que alguém vai incluí-la no próximo discurso?

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Tropa de Elite

Cioe chega no Aníbal Bruno tocando música de "Tropa de Elite"

"Ao som da música do filme "Tropa de Elite", uma unidade tática da Companhia Independente de Operações Especiais (Cioe) entrou agora pela manhã no presídio Aníbal Bruno, para controlar a rebelião que recomeçou no início da manhã de hoje (12). Neste momento a situação no presídio parece tranqüila. Os sons de bombas de efeito moral e tiros pararam e a fumaça também diminuiu".

o_O

ok, eu tenho pena de quem tenta entender / explicar o nosso país.

sábado, 10 de novembro de 2007

Queda

E quando você ta feliz feliz, nada como uma boa queda pra colocar os pés no chão. Ou a cabeça.

Conta da noite: 5 pontos na minha testa. [tired]

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Quem viu, viu.

Passou hoje na novela Duas Caras, Suzana tosca Viera interpretando o reitor da UFPE Amaro Lins. Tinha tudo: ocupação da reitoria, ameaça de invasão pela polícia, gritos estudantis hilários, barricada de pneus, marília pêra engraçada de morrer e uns atores bem péssimos que não prestem muita atenção.

Não entendi se a cena era pra ser séria ou hilária, mas sinceramente fazia tempo que não ria TANTO.

Carreteiro

Dona de 65% do mercado de vinhos populares nos Estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba, a Indústria de Vinhos Carreteiro anunciou a construção de mais duas plantas de envasamento no Nordeste: no Ceará e na Bahia.

Expandindo os negócios, hein?

Quando eu tinha dezessete anos e bebia carreteiro de forma frequente (argh!), sempre ficava noiando que cada garrafa tinha um gosto diferente da outra. Algumas vezes, extremamente diferentes. Daí um dia coloquei isso em discussão numa mesa de bar enquanto bebíamos lá na rua do Apolo, no saudoso 'fogão'. A maioria concordou: principalmente depois de cinco garrafas consumidas. Foi então que uma amiga concluiu: é a quantidade de baratas na garrafa que diferencia uma da outra.

E quando vimos ela tinha uma patinha de barata no canto da boca.

Nem preciso contar o resto né?
(se quiserem saber continuem descendo...)







































































































hahahahahahah
a parte da patinha é mentira.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

>_< (vergonha alheia)

Mais um clássico da falta de noção do jornalismo pernambucano (do Blog de Jamildo, óbvio):


JARDIM DA INFÂNCIA 06/11/2007 21:20

Batalhão de choque não chega junto e estudantes continuam ocupação do prédio da UFPE

Mesmo sem sentido, ocupação dos estudantes já dura 11 dias.

O prédio da reitoria da UFPE permanece ocupado pelos estudantes ligados ao movimento estudantil.

Na segunda-feira, oficiais da PM estiveram com o reitor Amaro Lins, mas nada resolveram.

A polícia disse que não era assim fácil, que estava se organizando e que tinha que se preparar. Sabe como é, depois do Capitão Nascimento, a estratégia tem que ser valorizada em cada ação.

[...]

Mas sério... que espécie de comentário é esse?

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O Elicangate de Tropaceiro

"Premiados e rentáveis, estes filmes divulgam idéias nacionalistas com soluções evasivas, impõem um espírito de produção, envolvem as massas com estes temas, dominam as elites indecisas, prendem inocentes úteis e são facilmente utilizados pelas forças reacionárias que encontram, neste tipo de nacionalismo pseudo-revolucionário, uma boa válvula de escape. Em todas as épocas os políticos sabem muito bem usar os meios de comunicação."

Glauber Rocha sobre O Cangaceiro, de Lima Barreto (Revisão Crítica do Cinema brasileiro, 1963, P. 72)

Só lembrei de Tropa de Elite, pega um, pega geral.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Papai Noel

E segundo a ONU, vem aí o tsunami do ópio:

Agência France Presse

CABUL – A Ásia Central corre o risco de ser vítima de um “tsunami” do ópio por causa de uma produção no Afeganistão superior ao consumo mundial, advertiu na quinta-feira em Cabul um alto responsável da Organização das Nações Unidas (ONU).

“Há um excesso” de produção “em relação ao consumo” no mundo, declarou Jean-Luc Lemahieu, o chefe para a Europa, Ásia do Oeste e Central do Escritório da ONU para a Droga e o Crime (ONUDC), na terceira conferência do Pacto de Paris sobre o Afeganistão e os Países Vizinhos.

A produção de ópio (substância que é extraída da papoula), no Afeganistão deu um salto de 34% em 2007 e dobrou desde 2005, atingindo 8.200 toneladas, segundo relatório recente da organização.

“Esta enorme quantidade vai criar um tsunami na região, e é necessário responder a isso”, disse Lemahieu, explicando que esse excesso se traduzirá em preços mais baixos nos mercados regionais, correndo o risco de aumentar a dependência dos consumidores, sobretudo na China e na Índia, países próximos ao Afeganistão.

Por enquanto, explicou, “o vínculo com o mercado na China não foi estabelecido” a partir do Afeganistão, enquanto que isso já aconteceu com o “Triângulo de Ouro” no Sudeste Asiático (Vietnã, Tailândia e Mianmar), onde a produção de ópio está em vias de erradicação.

Especialistas de 55 países e organizações internacionais reunidos durante dois dias na capital afegã dedicaram uma parte importante de seus trabalhos às conseqüências desse problema na China.

“As intervenções dos participantes foram, principalmente, sobre os meios de combater o tráfico em nível regional, com ênfase em uma maior troca de informações entre os países vizinhos e patrulhas fronteiriças mistas”, destacou o ministro interino afegão da Luta Antidrogas, general Khodaidad.

Programas financiados pela comunidade internacional já estão em aplicação entre países fronteiriços e um esforço particular foi observado, segundo uma fonte diplomática européia, por parte do Irã, pelo qual transita, rumo à Europa, uma parte do ópio já transformado em heroína nos laboratórios afegãos.

Este ano, Paquistão, Irã e Afeganistão assinaram um acordo de cooperação na luta contra as drogas. Esses países, chamados de “Crescente de Ouro”, em alusão ao “Triângulo de Ouro” do Sudeste Asiático, vêm se reunindo em nível ministerial para discutir medidas comuns.

Em relação a medidas específicas de luta contra a droga no Afeganistão, “é preciso dar tempo ao tempo”, disse um responsável da ONUDC, lembrando dos 20 a 30 anos necessários para obter resultados tangíveis, sobretudo ao longo dos últimos dez anos, na erradicação do ópio no interior do “Triângulo de Ouro”.

“A estratégia antidrogas no Afeganistão é boa. Do que precisamos é que ela possa se aplicar de maneira eficaz com um apoio ao mesmo tempo regional e internacional”, observou o responsável da ONUDC para o Paquistão, Vincent McLean.

Entre as dificuldades encontradas no Afeganistão, um especialista americano em questões de drogas na região, Barnet Rubin, citou o envolvimento de personalidades públicas, ou de seus familiares, no tráfico, o que já foi apontado por ONGs no passado. De acordo com o general Khodaidad, “não há nenhuma prova (da presença) de traficantes afegãos em um nível governamental importante”.

Acho foda essa falsa preocupação, porque até parece que as autoridades ocidentais estão super preocupados com a Ásia: alguém tem alguma dúvida de que esse tsunami vai crescer, crescer e quebrar nas praias frias da Europa e dos EUA? Alô, quem produz em massa não é quem consome em massa. Papai Noel vai levar muita heroína pros europeus e americanos passarem bem o inverno.

Mas só se forem bons garotos.

CAPA

O Diario de Pernambuco saiu hoje com uma manchete de capa bem espirituosa:

“BALA NELES”

(referente aos dois gols que o jogador Carlinhos Bala, do Sport fez contra o Palmeiras).

sábado, 3 de novembro de 2007

Metamórphosis

Limite (1931), de Mário Peixoto

(Publicado originalmente no Dissenso)

No decorrer dos últimos meses, tenho refletido bastante sobre a influência de obras sobre obras. Não de maneira determinista como em quase todas as críticas de cinema esse pensamento é posto em discussão, mas numa perspectiva onde tendências estéticas, diretores ou mesmo filmes avulsos têm seus princípios redimensionados, a partir da inclusão de especificidades de diferentes contextos. Não são traçadas linhas formais de seqüências a seqüências, de enquadramentos a enquadramentos ou de utilização de luz a utilização de luz. Nada disso. Também não questiono as possíveis paródias ou homenagens diretas. De fato, elas existem, se multiplicam e se vislumbram, mas na situação que pretendo aqui tratar, tudo se dá num caráter mais fluido e menos prático – esquecendo e desrespeitando qualquer linearidade. É preciso perceber que nem sempre as influências se mostram completamente conscientes por quem as utiliza e que nunca permanecem as mesmas depois de utilizadas: entre as supostas linhas formais que se apontam existe um conjunto de desvios que precisam ser lembrados. Só para ilustrar não é tão raro acontecer de críticos formularem ligações externas dentro de uma obra (seja um filme, um disco ou uma performance), cujo criador sequer conheça ou tenha antevisto / atinado como fonte de inspiração. Se por um lado essa postura pode estabelecer um clima constrangedor, propondo um questionamento à validade e credibilidade do trabalho crítico; também pode, por outro, consolidar duas reflexões mais importantes: a que o jornalista carrega consigo uma rede de influências próprias, geralmente ocultas em seus textos e que as obras de arte podem sim desenvolver algum diálogo com artistas desconhecidos ao criador. Para tanto, alguns conceitos precisam ser abandonados e outros instituídos.

Proponho, então, uma tênue, mas pontual distinção de percurso: não se trata em encontrar no trabalho do artista póstumo o que permaneceu como ensinamento ou determinação do anterior, mas perceber como o engatinhar e os primeiros passos, dados pelo anterior, foram estritamente necessários para que o póstumo pudesse desenvolver seu próprio jeito de andar e iniciasse seu percurso já de pé. As preocupações se tornam outras sucessivamente: sofrem as metamorfoses precisas para que as obras não caiam na estagnação ou se percam na repetição que, diariamente, preenche todas as nossas telas e que, particularmente, me entorpece de um imenso tédio. O cinema não passou incólume por Griffith, por Eisenstein ou mesmo por Godard. Também não se viu livre da repercussão do advento do som, da inserção da cor ou da diminuição no tamanho das câmeras. O cinema nunca ignorou os projetos estéticos por mais diversos e estranhos que fossem, nem fechou os olhos para as iminentes revoluções culturais, sociais e tecnológicas. O cinema presenciou e resistiu ao nascimento da televisão; se apropriou das novas mídias e, com uma intimidade desconcertante, devorou e se deixou devorar pela cultura Pop. Todas as artes transpõem seus dilemas através desse tipo de embate. Às vezes sutil, mas embate. Lembremos, por exemplo, que um dia a pintura se viu diante da invenção da fotografia e nunca mais foi a mesma, a ponto de se libertar “definitivamente de quaisquer pressupostos realistas [...]e do fantasma platônico de ser eternamente imitação das aparências” (Menezes, 1997, P. 45). Há um permanente aprendizado implícito e contextual não necessariamente referenciado.

De alguma maneira, é como pontua Pierre Bourdieu ao escrever que “mesmo que não se refiram uns aos outros, os criadores contemporâneos estão objetivamente situados uns em relação aos outros” (Bourdieu, 1996, P. 54-56) . A presença de cada um se afirma durante o processo criativo seguinte (retificando, refutando, transformando, dialogando, etc), o que prova, ainda na linha de raciocínio do sociólogo francês que “nenhuma obra existe por si mesma, isto é, fora das relações de interdependência que a vincula a outras obras” (idem). Esboça-se um resultado eternamente híbrido, possivelmente inspirado e distinto da corrente teórica original. É como se firmasse uma subliminar consolidação do intertexto artístico (e transartístico) – regido, disforme e expansível à maneira do repertório de cada um. As diferentes perspectivas de conhecimento/reflexão sobre estética precisam ser resgatadas e colocadas em conflito. Talvez por isso, tenho refletido ainda mais, na possibilidade das influências de obras sobre obras provirem não de um ou dois, mas de diversos estilos, surgidos em realidades até contrárias, sob aspectos também contrários. Além de mesclar princípios e indicações, aplicam-nos ao seu próprio meio, transfigurando-os através do tempo e os desapropriando de si mesmos. A contemporaneidade está cheia disso. Tudo na busca por uma instância estética, poética e técnica particular, diferente de todas anteriores que, em algum momento, serviram ao processo de criação. Pensando assim, não poderia ter assistido Limite (Brasil, 1931), de Mário Peixoto em um momento mais adequado.

Ainda que não possamos estabelecer uma genealogia cinematográfica (e fazê-lo seria uma grande bobagem ou um grande desafio), não é difícil notar que esse filme (único do diretor) funciona como um baú brasileiro, onde estão depositadas algumas proposições, inventividades ou pós-proposições de todas as vanguardas cinematográficas européias surgidas até então: para dentro e além do Expressionismo Alemão, da Avant Garde Francesa e do Formalismo Russo. O que não acontece por acaso, afinal Mário Peixoto participou de algumas sessões do primeiro cineclube nacional, o Chaplin Club e colaborou nas discussões que fundamentaram as 9 edições do jornal cinematográfico O Fan (1928-1930), além de ter estudado e morado na Europa, tendo um contato relativamente próximo com a movimentação cinéfila que se formava. Uma de suas viagens ao continente – a mesma em que descobriu a imagem-inspiração de Limite na revista francesa VU – foi destinada apenas ao ato de assistir filmes. Há uma influência: não nego, nem meço. E qualquer tentativa racional, nesse sentido, se mostraria falha. Por ora, digamos que Limite é apenas uma forma alternativa de contar a história do cinema até 1931. Não como um documentário preocupado com a didática (trata-se de uma ficção experimental), mas como um projeto estético que revela uma dezena de entrecruzamentos possíveis entre propostas vanguardistas tidas, singelamente, como paralelas.

Esse diálogo intertextual, entretanto, só pode ser desenvolvido a partir do conceito de possível relação, não de determinação, não em forma de linhas incontornáveis e pressupõe um compartilhamento mínimo de referências entre o crítico (ou propositor) e o espectador (ou dissidente), para não se tornar um debate absolutamente nulo. É um risco – afinal esse mesmo compartilhamento responsável pela discussão, pode resultar na formação de um grupo fechado fadado ao consenso. É uma faca de dois gumes. Podem acusar Mário Peixoto, como fez Glauber Rocha (Rocha, 2003) diversas vezes e mesmo antes de assistir ao filme, de construir uma obra burguesa, alienada, de um esteticismo vazio. Particularmente discordo dessa opinião – se encaixa no velho chauvinismo de se tentar estabelecer um princípio básico para a arte estritamente nacional, partindo do necessariamente engajado social e determinando, a priori, o caráter desse engajado social (em contrapartida ao caráter do chamado 'social evasivo' como sugere o cineasta baiano). Limite está apenas distante desse conceito – e conseqüentemente dos conceitos de regional, de local e de identidade ao qual estamos repetidamente vinculados. Nem sempre por opção. Pois é, esse distanciamento do que seria a arte estritamente nacional, fundamentada por Glauber e que encontra seu patrono na figura de Humberto Mauro, não torna Limite menos brasileiro, pelo contrário, o traduz mais contemporâneo. Para além de todas as alegorias limítrofes recorrentes no próprio filme: para além das bordas do barco, das cercas de arame, das grades do presídio e do fluxo contínuo entre o presente e o passado. Para além das imagens-conceito maiores: para além da face feminina enlaçada pelas mãos algemadas e para além dos olhos que se alternam com a vastidão do mar. Limite está diretamente e a todo o momento ligado com o ‘para além‘. Como um oxímoro mesmo.

Admito que na maioria dos livros que li até hoje e dentro da universidade (no meu caso, dentro do curso de Comunicação Social), boa parte das disciplinas direcionadas ao estudo do cinema, como o foi ‘Teorias do Cinema‘, mapeiam as correntes estéticas de maneira estática, isolada e pontual. Algo totalmente sem sentido. É como enclausurar uma idéia dentro de uma gaiola. Fica uma sensação estranha como se o formalismo tivesse nascido e morrido na Rússia e ponto, como se o expressionismo tivesse nascido e morrido na Alemanha e ponto, como se o neo-realismo jamais tivesse rompido as fronteiras da Itália. E pior, como se o resto do mundo estivesse apenas descansando, enquanto tudo isso acontecia. Em nenhum momento se foca nos desdobramentos e mudanças ocorridas dentro do próprio pensamento; nem há um confronto de posições, menos ainda o estabelecimento de opiniões divergentes – o que tende a encaixar os vários diretores de um mesmo período, dentro de um único discurso (o próprio Cinema Novo sofre desse mal diante da efígie de Glauber). Qualquer espécie de movimento é sempre multifacetado: seja pelas facetas de quem o faz, seja pelas as facetas de quem o lê. Há uma séria limitação espaço-temporal na construção acadêmica sobre cinema (em especial nos superficiais cursos pretenso-cinema). Isso acontece, entre outros motivos, porque quase toda bibliografia adotada e/ou recomendada é de origem estrangeira e, na grande maioria, sequer inclui o Brasil na história do cinema. Além disso, não há uma continuidade metodológica a médio ou longo prazo, de modo que o ensino se torna um resumo em tópicos, uma mera oficina acelerada. Um semestre em quatro meses e algumas faltas não é nada para o cinema.

Óbvio que não acredito que o problema seja falar nos europeus e americanos (ou seria uma tremenda hipocrisia de minha parte), mas no não falar de nós e de tantos outros. Raras vezes citam Glauber Rocha nos livros e na sala. Raras – apesar de toda aura. Essa idéia, que funciona como uma premissa multiculturalista, é amplamente discutida no livro Crítica da imagem eurocêntrica, de Ella Shohat e Robert Stam: “não se trata, na verdade, de um ataque à Europa ou aos europeus, e sim, ao eurocentrismo, ou seja, à tentativa de reduzir a diversidade cultural a apenas uma perspectiva paradigmática que vê a Europa como origem única dos significados, como centro de gravidade do mundo, como ‘realidade’ ontológica em comparação com a sombra do resto do planeta” (Shohat, Stam, 2006, P. 20). Tenho pensado, inclusive, que essa exclusão da alteridade na prática de ensino, nos distancia das origens do cinema brasileiro (e de tantos outros cinemas, para falar a verdade), deixando nossa visão da primeira metade do século passado focada e limitada, restritamente, às produções européias e americanas. Obviamente parte desse ranço resiste até hoje – vide a programação no cinema mais próximo de você – onde a presença de dois blockbusters é o suficiente para ocupar metade das atuais 48 salas disponíveis em Recife (levando em conta alguns cineclubes e salas alternativas). Podemos nos divertir horrores assistindo Harry Potter, Homem Aranha ou Piratas do Caribe, mas o mínimo que podemos fazer é conhecer a nossa própria história artística e a realidade produtiva que nos cerca intimamente – não apenas a que nos é imposta por vias comerciais (redescobrir o ‘Ciclo do Recife’, por exemplo, é um importante passo já dado por alguns pesquisadores).

Nesse sentido, Limite é uma descoberta muito recente, apesar de meu foco acadêmico na área do audiovisual já estar direcionado há alguns anos – e, Paulo Cunha, o objetivo dessa afirmação não era a auto-complacência. Enfim, se dentro da universidade nunca havia escutado comentários sobre o filme (o assisti num grupo de estudo de cinema muito pequeno e específico), descobri na internet uma série de escritos acadêmicos, uma certa devoção à obra de Mário Peixoto. Conheço um bom número de produções desse mesmo período – todas estrangeiras, de fato. Entre os russos, que além de cineastas são teóricos, poderia citar A Greve (1925), O Encouraçado Potemkin (1925), Outubro (1928), de Sergei Eisenstein; A Mãe (1926), O Fim de São Petesburgo (1927) e Tempestade sobre a Ásia (1928), de Vsevolod Pudovkin e O Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov. Dovzhenko ainda está na lista esperando a sua vez. Entre os alemães, destacaria O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene; Nosferatu: Sinfonia do Horror (1922), Fausto (1926) e Aurora (1927) de F. W. Murnau, além de A Morte Cansada (1921), Metrópolis (1927) e M – O Vampiro de Dusseldorf (1931), de Fritz Lang. Por fim, valeria ainda lembrar de O Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), dirigidos por Luis Buñuel e Salvador Dalí; de A Queda da Casa de Usher (1928), de Jean Epstein e de O Anjo Azul (1930), de Josef Von Stenberg. Carl Theodor Dreyer, Georg Pabst e Ernst Lubitsch estão a caminho: espero que os downloads não demorem muito. Essas obras e cineastas me ajudam agora a consolidar e expandir uma noção de intertexto cinematográfico, em substituição à idéia deslocada de influência, partindo dos irmãos Lumière até hoje atravessando vários espaços e tendências. E volto a repetir: trata-se de uma trajetória fluida e não determinista. Limite precisa ser fincado em qualquer estudo sobre cinema como essencial. Não apenas em reconhecimento ao cinema brasileiro, mas em defesa do cinema em si.

Mário Peixoto conseguiu estabelecer uma obra aberta e ousada: as marcas do tempo impressas na película (pouco discutidas enquanto recurso estético) consolidam um experimentalismo já empregado originalmente e desmistificam o estatuto do filme como uma produção imutável ao longo dos anos (para além da idéia de difusa cognição dentre os diferentes espectadores). Institui-se uma reflexão que se prolonga; um processo que se prolonga. Acredito que a restauração / remasterização, sob a tutela de Walter Salles, precisa respeitar um pouco essas marcas – afinal o tempo não apenas se integra à proposta, como carrega, implicitamente, um discurso sobre as prioridades do mercado cinematográfico. Limite sequer chegou a ser exibido comercialmente no começo da década de 30, teve seu ‘lançamento‘ numa sessão promovida pelo Chaplin Club no bairro da Cinelândia (Ramos, 2000, P. 119) e passou as décadas seguintes restringido em uma única cópia se deteriorando. Há uma lógica conservadora pairando que precisa ser debatida: o entretenimento não pode ocultar por completo a produção intelectual. No filme de Mário Peixoto jamais uma sinopse poderia estragar o prazer da narrativa (ou da não-narrativa se preferirem): fica uma sensação de que cada espectador é responsável pelo significado da história, que as particularidades de cada olhar é o que define todas as sugestões presentes. O cinema mudo ao não se utilizar de sons ou diálogos – ou utilizá-los de forma limitada através de tarjas – propõe uma forma de entendimento diferente ao espectador contemporâneo, acostumado às explicações redudantes ao longo do roteiro. Torna-se aqui ainda mais consistente a premissa de “nunca podermos separar com nitidez o que vemos do que sabemos” (Menezes, 1997, P. 25), como afirma E. H. Gombrich (citação retirada do livro A Trama das Imagens, de Paulo Menezes). O caráter da obra permanece suspenso entre o pensamento do artista e o do espectador – sob a mediação do repertório e experiências do último. A platéia deixa de ser passiva para se tornar uma espécie de co-autora, preenchendo detalhes ocultos com sua própria imaginação e assim, interferindo nas concepções originais e disseminando diferentes sentidos num percurso extremamente pessoal.

Acontece que essa falta de obviedade proposta naturalmente pelo cinema mudo, às vezes costuma assustar as pessoas que procuram um caminho único; que tentam entender todas as obras a partir de uma lógica padrão e não se sentem seguras em defender sua própria capacidade imaginativa (terminam pedindo explicações, acolhendo explicações, quando poderiam provocar elas mesmas as discussões). Hugo Munsterberg, um dos teóricos pioneiros do cinema, sintetiza bem em seu livro The Photoplay: a psychological study (Xavier, 1983, P. 27) um caminho possível ao espectador contemporâneo, em especial no caso desse espectador – talvez ele próprio – estar diante do cinema mudo: “Devemos acompanhar as cenas que vemos com a cabeça cheia de idéias. Elas devem ter significado, receber subsídios da imaginação, despertar vestígios de experiências anteriores, mobilizar sentimentos e emoções, atiçar a sugestionabilidade, gerar idéias e pensamentos, [...] Uma infinitude desses processos interiores deve ir de encontro ao mundo das impressões”. Pode até parecer, inicialmente, um encadeamento de não-critérios idealistas ou palavras ao vento de quem não viu o cinema desabrochar, mas nunca se esqueçam que esse é apenas um possível caminho proposto há muito tempo, quando o cinema mal tinha consciência sobre si e do qual percebo uma particular sabedoria. Que fique claro, desde já, que as minhas palavras não funcionam como uma determinação e se elas parecem ser uma determinação defendendo ironicamente uma não-determinação, é, por ora, mais um recurso para dar ênfase e vigor aos meus argumentos, que uma estratégia maldosa de enlaçamento invisível (ou de conquista às avessas). É um aparente paradoxo entre o que se defende no texto e o que se pratica no texto; paradoxo que vale a pena insistir e insistir, a partir do momento em que existe um espaço aberto, onde qualquer um a qualquer hora pode interferir.

Só para finalizar esse escrito, acredito que todos nós podemos notar (e é muito simples fazê-lo) o quão Mário Peixoto se utiliza da presença excessiva de cada corte (e de longos planos, para época, sem corte algum), de movimentos de câmera raros e dos mais diferentes recursos estéticos – como sombras, enquadramentos cortados, ângulos super inusitados de visão – criando um grande entrelaçado de brincadeiras formais. Chega ser impressionante esse virtuosismo técnico (Brasil,1931; Brasil, 1931; Brasil, 1931 – só pra ressaltar). Entretanto, apesar de todas essas sugestões serem lançadas na tela pelo cineasta, a palavra última de significação é do espectador (e realmente preciso ler os livros opostos ‘A Obra Aberta’ e ‘Os Limites da Interpretação’, ambos escritos por Umberto Eco, mas, por enquanto, posso fazer essa mesma distinção baseado nas diferenças essencias do segundo diante do primeiro Barthes, do subjetivismo excessivo defendido em A Câmera Clara diante do objetivismo castrador, mas essencial no desenvolvimento perceptivo, de seus vários anos semióticos). Talvez esse seja o ponto mais interessante do filme: a capacidade de suspensão cognitiva que ele causa. O que naturalmente o aproxima de obras abertas contemporâneas, representadas principalmente pela videoarte e pelo cinema experimental e que também o aproxima de produções de seu próprio tempo – seja de Vertov, de Murnau ou Buñuel (como já pontuei anteriormente). O mote de Limite são três náufragos dentro de um pequeno barco, perdidos no mar e em suas recordações. Todo resto é responsabilidade de cada um. O filme sofre uma metamorfose a cada exibição: não pretendo delimitar a abrangência completa desse mito durante todos esses anos: e a cada dia, menos e menos e menos ainda. As metamorfoses continuam.

Limite. Brasil, 1931. Direção e Roteiro: Mário Peixoto. Fotografia: Edgar Brazil. Elenco: Olga Breno, Taciana Rey, Carmem Santos, Raul Schnoor , Brutus Pedreira. 120 minutos.

Para Baixar: Limite

Referências Bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a Teoria da Ação. Campinas: Papirus, 1996.

MENEZES, Paulo. A Trama das Imagens: Manifestos e Pinturas no Século XIX. São Paulo: EDUSP, 1997.

RAMOS, Fernão. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Senac, 2000.

ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

SHOHAT, Ella e Robert Stam. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

XAVIER, Ismail (organizador). A experiência do cinema. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.