Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly
(Publicado originalmente no
Dissenso)
Depois de assistir a Cantando na Chuva (EUA, 1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, em maio desse ano (2007), me deparei com uma série de questões já pontuadas no
ensaio anterior, referentes à postura que uma obra de arte (ou o conjunto delas) assume diante de um repertório pessoal – podendo causar diferentes reações, de acordo com o estágio de conhecimento, experiência e discurso cinematográficos impressos em sucessivos momentos de um mesmo espectador (podendo causar, inclusive, diferentes ou complementares reações de acordo com o estágio emotivo, físico, lisérgico, etc…). Assim, a presença de alguns filmes e a ausência de outros na nossa memória, além do senso comum, do conjunto de textos acadêmicos, teóricos, jornalísticos; das viagens e pessoas que conhecemos, dos comentários profundos e inúteis ao qual tivemos contato, entre mil outros aspectos interferem não apenas numa concepção ampla sobre o cinema, mas também na construção valorativa para a película seguinte. Algumas permanecem sólidas, outras se desmontam em pedaços. Todas as obras recentemente vistas serão dimensionadas a partir do repertório construído por cada um até então – para além da temporalidade da própria obra. Tornam-se eqüitativamente importantes o contexto original do filme X – e em alguns casos isso se perde – e o momento em que esse filme X passou a fazer parte do imaginário do espectador contemporâneo Y, levando em conta que esse espectador pode tanto consumir a atualidade, como entrecruzá-la com referências distantes temporal ou espacialmente, através do amplo – e cada vez mais simples – acesso dado pelas novas tecnologias. Um singelo clique num mouse nunca foi tão significativo.
É como se o estigma (ou valor) sobre um filme antigo não seguisse apenas o seu legado histórico, mas se firmasse a partir da negociação entre a cronologia fixa da película e a cronologia em processo do espectador (se adequando ao repertório de cada um). Não se pode pensar em uma das cronologias e excluir a outra. Qualquer discurso que o faça corre o risco de cair nas seguintes armadilhas: ou irá soar idealista ao resgatar e ressaltar um conjunto de elementos distantes, numa preocupação quase hermeneuta, imaginando que a atualidade não está imbricada na nossa cognição ou irá soar excessivamente ingênuo, a-histórico e preconceituoso diante de uma possível totalidade contextual. De fato, diante dos musicais me encaixava perfeitamente no segundo erro: falava dessas produções como um todo, apenas pelos quatro ou cinco filmes contemporâneos que tinha tido acesso (e falava firme, sem hesitações). Essa verborragia precipitada me despertou para a necessidade dessa negociação entre dois tempos – com perdas e ganhos para ambos os lados. As obras não estão apenas situadas diante das obras ao qual são contemporâneas, como pontuei no ensaio sobre Limite, mas também, das que se tornam contemporâneas através da intermediação de um espectador. Ou seja, qualquer conjunto de filmes, de qualquer época ou qualquer lugar pode ser colocado em diálogo dependendo dos argumentos apresentados. Toma-se como elementos opostos (mas que se apontam) o conhecimento prévio sobre os objetos escolhidos e a fundamentação sutil e particular para uma nova abordagem. A relevância ou não dessa convergência espaço-temporal, desse resgate contemporâneo como uma nova forma de disseminação e contestação de sentidos será re-discutido a posteriori e de preferência não só por mim. Toda uma geração está envolvida nesse processo de re-significação (e cada vez mais envolvida).
A partir disso e antes de prosseguirmos, talvez seja necessário assumir (e explicar) a existência de certo preconceito meu – nesse exato momento já moderado – diante do gênero musical (e detesto a palavra-limitação ‘gênero’, apesar de nesse caso me parecer inevitável). Também é preciso ressaltar que não se trata daquele velho receio pontuado ano após ano por críticos de cinema, afim de justificarem essa antipatia inicial do grande público; antipatia tratada e sintetizada como presunção ignorante no artigo Cantando e Dançando à saída do cinema, de Ruy Castro: “basicamente, fazem-se duas acusações aos musicais: são filmes chatos porque, no meio de uma cena, o sujeito começa a cantar e são irreais porque, neles, qualquer marinheiro ou mata-mosquito dança e canta como um profissional” (Castro, 2006, P. 19). No meu caso específico, o preconceito não se fundamentava em nenhum desses argumentos até porque o recurso de ruptura climática (ou exposição de um clima interior) por si, mostra o quão ligados à liberdade criativa estão os musicais – há um desprendimento notável de qualquer realismo fiel, de qualquer continuidade óbvia quando um mata-mosquito grosseiro se transforma num bailarino estonteante e, em seguida, volta a ser o velho mata-mosquito grosseiro. Meio o que acontece em
Sete noivas para sete irmãos, de Stanley Donen (EUA, 1954): aqueles sete caipiras nunca seriam ótimos dançarinos… e são. Ponto. Admiro essa liberdade recorrente nos roteiros dos musicais; esse contrato diegético implícito e silencioso entre o cineasta e o espectador. A pontuação dos críticos na tentativa de explicar o porquê das pessoas não gostarem de musicais, pelo contrário, sempre me fascinou um pouco. Talvez influenciado por algumas irônicas
cenas do seriado Six Feet Under ou pelo clipe
It’s oh so quiet, da Bjork, dirigido pelo Spike Jonze. De fato, me interessei primeiro pelos pequenos desvios contemporâneos que brincavam e se apropriavam do gênero, remodelando-o ao bel prazer de suas propostas narrativas. Desvios (homenagens?) maiores, como Amores parisienses (FRA, 1997), de Alain Resnais e Todos dizem eu te amo (EUA, 1996), de Woody Allen só viriam bem depois. Se aparecessem antes não teriam efeito algum dentro de minha cronologia difusa. Eu precisava ser conquistado em passos curtos.
Meu preconceito (como a maioria deles o é) partia de uma pura e simples ignorância, afinal sequer possuía uma base vasta de filmes vistos desse gênero (sic): o musical sempre me pareceu bobo, pouco engraçado e romântico-meloso demais (como minha grande amiga Lia disse: “é do seu feitio, Rodrigo, assistir um filme chamado ‘Amor, sublime Amor’ e dizer que é um saco”). Assumo que tenho uma queda mais pelo estranho amor que pelo sublime amor. Naturalmente essa aversão retardou meus passos nesse campo. Nada me impedia de assistir Cantando na Chuva anteriormente, além da pura falta de interesse – fundada pela influência rasteira e por enquanto negativa de meu próprio repertório meia boca. Até então, tinha visto Moulin Rouge e Chicago (e os ainda mais jovens estão assistindo High School Musical, Dreamgirls e Hairspray), achava o primeiro um desperdício de bons atores num baile Pop e o segundo uma realização tecnicamente eficiente entupida de momentos constrangedores (Richard Gere dançando, por exemplo). Sinceramente não entendia o
saudosismo selado envolta dessas produções, afinal em mim não havia nostalgia alguma. Vi as duas obras isoladamente e não como uma retomada de ‘um passado glorioso, esplêndido, magnífico’ como comentava repetidamente o crítico Rubens Ewald Filho na festa do Oscar 2003 (sic, sic, sic). Às vezes, eu sinto que o mesmo vício de apontar para trás e dizer que tudo foi melhor, acontece quando se pega a obra presente e a aponta para trás dizendo que ela é tão boa quanto. Eu entendo o charme do jogo de referências, mas esse é um vício que pode surgir tanto fundamentado como numa afirmação solitária e vazia. Um risco.
De qualquer maneira, temos que perceber também que a perspectiva de isolamento – não comparativa com qualquer outra época – é recorrente em boa parte da platéia jovem contemporânea que não vivenciou uma produção intensa dos musicais, nem ouviu falar em nomes como Fred Astaire (e sua classe), Busby Berkeley (e sua extravagância) ou Cyd Charisse (e suas pernas). Há um ano, me incluía perfeitamente nesse grupo. É um processo natural e não precisamos lamentar. Obviamente, já tinha assistido Hair e não me deixava convencer por toda sua aura de afetação datada (pois é, já superei minha fase neo-hippie juvenil). Além desses, conhecia um ou outro trabalho de Carlos Saura – e ainda permanecia um pouco indiferente, mal lembrava de Grease, Flashdance e outros ‘sessão-da-tarde’ e fazia o favor de encaixar o The Wall, Hedwig and the Angry Inch, Velvet Goldmine e Dançando no Escuro (e não só esses) numa modalidade aparte. Dentro do preconceito plenamente estabelecido, os filmes citados, em especial o de Lars Von Trier nunca poderia ser classificado como um musical. Primeiro: eu o adorava. Segundo: como 80% das pessoas chorei horrores ao final. Terceiro: não pretendia viver nesse paradoxo do gosto e do não-gosto simultâneos (ainda que essa produção tenha perdido um pouco de seu impacto depois de Não Matarás, de Krzysztof Kieslowski e eu de fato tenha entrado nesse paradoxo). Tratava-se de uma lógica ambígua mesmo: via-me extremamente encantado por diversas
cenas musicais inseridas em filmes
não-musicais, mas os musicais-musicais (ou pelo menos, os que eu tinha visto até então e lembrava) me aborreciam ou entediavam profundamente. Profundamente.
Cantando na Chuva, entretanto, se impôs de maneira brutal diante de meus olhos previamente desacreditados. Até então cantarolava singing in the rain sarcasticamente por conta de Laranja Mecânica (EUA, 1971), de Stanley Kubrick e apesar de ter uma vaga idéia da cena original preferia ignorá-la (a
homenagem surgira antes do
homenageado, o que se torna cada vez mais comum e confirma a idéia de negociação entre cronologias). Em maio desse ano (Edit: 2007), depois de assistir à obra de Gene Kelly e Stanley Donen, me entreguei a uma auto-crítica onde foram reveladas ignorâncias sobre a história e os desdobramentos do estilo e desfeitas as cristalizações conceituais taxativas: a cada ironia ou passo de dança, um caminho para dezenas de outros filmes começava a se formar. E engraçado que esse percurso no tempo, em busca do conhecimento histórico é marcado essencialmente pela descontinuidade: como se a cronologia ‘original‘ fosse recortada em mil pedaços e re-montada, aos poucos, pelo desbravador contemporâneo a partir de cada novo-filme-antigo visto. A ordem de revelação de qual será assistido antes ou depois se torna totalmente arbitrária, a não ser que adotemos um metodismo acadêmico. Pensava no gênero em questão de maneira extremamente limitada diante das variantes possíveis. Entre tantos filmes para conhecer, os musicais poderiam ser simplesmente os últimos da fila. Passei anos alimentando esse receio opressivo, mas mesmo depois de todo preconceito estabelecido, firmado, enraizado a 400 mil metros, Cantando na Chuva criou seu próprio paradigma e ditou suas próprias regras (uma
unanimidade sim – apesar de na época de seu lançamento ser considerada uma obra abaixo de Sinfonia de Paris, vencedor do Oscar em 1951). Em quinze minutos de filme, qualquer espécie de aversão já tinha se esvaído e minha valoração estava plenamente sob controle. Provavelmente não teria buscado os musicais e seus contextos sem esse primeiro passo. E aí que reside, para mim especificamente, a maior importância dessa obra.
O modo como se estrutura o sistema cinematográfico americano sempre é lembrado, enquanto conjunto – e admito: essa é uma afirmação grosseira – pela presença marcante do produtor a frente da obra – vide a influência de Arthur Freed ou mais recentemente de Harvey Weinstein – e por sua lógica estritamente comercial e pouco artística – e não que esses dois elementos sejam necessariamente opostos (essa história de colocar dinheiro e arte em lados opostos, quase como inimigos mortais às vezes me parece um tanto infantil). Cantando na Chuva representa uma época em que Hollywood sabia brincar consigo mesma, sabia utilizar recursos típicos e criticá-los em uma mesma instância – ainda que para atingir os objetivos comerciais de sempre (até porque os musicais eram produções caríssimas que precisavam de algum retorno para se manterem em produção constante – e a MGM mantinha). Por sinal, o gênero em questão é especialista em construir sua diegese dentro do próprio show business, se utilizando sempre de uma ironia metalingüística ou da exposição de plena-consciência sobre si. Tudo bem que no filme de Gene Kelly e Stalen Donen há uma cordialidade imensa, pois não existe uma pretensão em revelar sujeiras de bastidores, mas apenas tirar um bom sarro e debochar de sua própria condição (coisa que High Society (EUA, 1956), de Charles Walters faz
muito bem). As críticas sérias a Hollywood – produzidas fora de Hollywood – às vezes soam como outsiders, se estigmatizam demais como repúdio ao esquemão e terminam se formatando enquanto tal. O filme de Gene Kelly e Stanley Donen não. Estão inseridos dentro de um sistema produtivo e ao mesmo tempo jogam com esse sistema, através do humor e da ironia – e certa leveza tonal. Cantando na Chuva brinca com tudo que representa ao mesmo tempo em que também as valoriza.
Há deboches de todos os tipos e todos são auto-reflexivos. Dentro daqueles estúdios enormes qualquer história cretina levemente modificada pode se transformar num belo conto hollywoodiano. Com falso glamour, mas glamour. Isso é Hollywood: um boteco decadente que se passa por um conservatório de Belas Artes, um dia péssimo que se passa por um lindo dia se sol, uma narrativa trash que se passa por um épico monumental. Isso é Hollywood: um produtor que entra no set de filmagem e ordena que o suposto filme épico se torne um musical. E não poderia ser de outra maneira. Na história do filme, a atriz Jean Hagen interpreta Lina Lamont, uma estrela gasguita do cinema mudo que, com o advento do cinema sonoro, precisa ser dublada pela iniciante Kathy Selden, personagem interpretada por Debbie Reynolds. Entretanto, “o que poucos sabiam é que, na verdade, a voz de Debbie Reynolds dublando Jean Hagen é que fora dublada. Por quem? Pela cantora Betty Royce e pela própria Jean!” (Castro, 2006) , nos revela Ruy Castro (e todo seu detalhismo biográfico) em seu desmistificador artigo ‘Uma serenata ao maior musical do cinema’. O trabalho da atriz Jean, geralmente confundido pelos espectadores, é um ótimo exercício para diferenciarmos a personagem irritante da atuação genial. Cantando na Chuva não é outra coisa, senão uma caricatura, uma paródia de si mesmo e de toda cultura de celebridade na qual se funda. É como se Gene Kelly com aquela sorriso imenso apontasse o dedo para si, para toda equipe técnica, especialmente para Debbie Reynolds e para alguns de seus espectadores e chamasse a todos (inclusive ele mesmo) de idiotas. De maneira bem sutil e charmosa é bem verdade – ninguém chega a se ofender – mas idiotas. Como os pudores são menores, fazem piadas-piadas-piadas e riem juntos-juntos-juntos. Tudo é
divertido. Muito
divertido. Logo no início do filme, há um comentário sobre o casal de astros principais que funciona como uma parábola de todo esse pensamento: “Ladies and gentlemen, when you look at this gorgeous couple, it’s no wonder they’re a household name all over the world… like bacon and eggs. Lockwood and Lamont!“. Para além do humor nonsense, essa frase resume – novamente de forma irônica – toda arbitrariedade comparativa de um sistema produtivo altamente etnocêntrico, sistema que tende a afirmar sempre que possível sua importância diante da história do cinema mundial. Hollywood gosta de mostrar não apenas sua face, ostentar não apenas sua influência – gosta de dizer, de assegurar, de se comparar a todo o momento (colocando-se como centro, óbvio).
Engraçado que ainda continuo achando a grande maioria dos musicais bobos e melosos-românticos demais (exceto, talvez, alguns como Sapatinhos Vermelhos (UK, 1948), de Michael Powell e Emeric Pressburger). O próprio Cantando na Chuva é bobalhão e excessivamente romântico-meloso, entretanto, já não enxergo isso como um problema a priori. Talvez eu tenha evoluído, de fato, no acordo diegético entre o cineasta e o espectador; tenha criado a pré-disposição para musicais (que antes, se dava como uma anti-disposição). Mas, além disso, há um detalhe ainda oculto. Nas produções contemporâneas, de Moulin Rouge a High School Musical, a montagem se porta de maneira extremamente agressiva, com cortes exagerados e exagerados. MTV pura. Não que eu seja contra esse tipo de edição, pelo contrário, não há preconceito algum nesse caso, afinal me criei nessa estética gravando videoclipes durante toda adolescência. Mas em Cantando na Chuva (e vários outros musicais entre as décadas de 30 e 60), a câmera deixa os atores dançarem, representarem e cantarem, porque de fato são dançarinos, atores e cantores – excepcionais nos três âmbitos. Essa me parece a primeira grande diferença. A câmera e o tratamento dos planos ao invés de esconder, se preocupar ou trucar uma inabilidade do ator tornando-o aparentemente hábil (o que também tem lá sua magia), toma uma postura de contemplação do ato. Assim, boa parte da responsabilidade é lançada ao intérprete (e ao diretor-coreógrafo, não esqueçamos), enquanto o enquadramento simplesmente busca o olhar mais privilegiado, uma otimização do show. O que já é um deleite aparte, pois convenhamos que alguns atores abusam do talento (o número de O’Connor ‘Make ‘em Laught é genial). E só para não fugir do clichê-mor é preciso dizer que Gene Kelly abusa mais que todos. Suas apresentações transpõem a idéia de virtuosismo técnico tão cobrada dos dançarinos, passando a explorar uma afirmação de vigor literalmente físico. Poucas vezes a desenvoltura, a técnica e a força caminharam tão bem a partir de um único corpo acrobático.
Um segundo ponto é a performance do elenco e a ação dos executivos sobre a obra. Gene Kelly é um produto e um ator / dançarino, Zac Efron é, por enquanto, apenas um produto. Sinto-me até meio idiota comparando qualidades artísticas tão discrepantes. No caso do primeiro a intervenção da figura do produtor se dá de maneira estrutural ao reunir os melhores profissionais da área para trabalharem juntos, e de maneira artística, afinal Arthur Freed é responsável pelas letras de quase todas as canções de Cantando na Chuva, canções escritas na transição do mudo para o sonoro num pedido / ordem de reciclagem da própria MGM. Foi daí que nasceu o roteiro. Isso deu uma liberdade enorme ao que Gene sabe fazer de melhor. Já no caso do segundo, a empresa Disney funciona como um Deus moral e publicitário que modifica do roteiro à escolha do diretor, cortando cenas ao bel prazer do marketing da franquia até se focar no elenco a partir de padrões meramente estéticos. E aqui não podemos esperar que Zac mostre o que sabe fazer de melhor, além de pentear seu cabelo milimetricamente sem erros ou aparecer num evento mais maquiado que a Cate Blanchett. Em terceiro lugar (quase que caio naquela ‘e não menos importante’), vale lembrar que o filme de Stanlen Donen e Gene Kelly resume muito bem uma característica dos musicais de sua época, no que se refere a como a cena é pensada para a dança e para a câmera, como os dançarinos se conectam diretamente com os recursos cinematográficos, sem menosprezarem seu próprio virtuosismo técnico. Isso só acrescenta. É importante notar também que, durante algumas apresentações cantadas, as personagens interpelam diretamente para a câmera, diretamente para o espectador, como se saíssem por um segundo do universo ao qual estão inseridos para fazerem um adendo urgente – que precisa ser feito e não pode esperar (como os que eu fico fazendo insistentemente através desses parênteses).
Por fim, assistir Cantando na Chuva será sempre como assistir, simultaneamente, três contextos históricos do filme-musical: o contexto da diegese fílmica, o contexto da produção do próprio filme e o contexto atual do espectador. Ou melhor, é assistir simultaneamente o primeiro contexto sob a ótica e desvios do segundo; o segundo sob a ótica e desvios do terceiro e o terceiro sob o grande dilema de analisar a si mesmo. O primeiro, vinculado à história do filme se passa num momento muito emblemático para o cinema no final da década de 20 do século passado: os anos do advento do som. Naturalmente são retratados anseios e mil questões, ainda que de forma caricatural, exagerada, referentes a esse processo: atores que não se adequaram; cineastas que não se adequaram; receios quanto à vulgaridade do novo recurso. É uma mudança brusca no modo de se fazer e pensar filmes por mexer, estritamente, na estrutura da
linguagem. A passagem do mudo para o sonoro foi tema de diversos estudos por parte de cineastas e teóricos – entre eles Eisenstein, Pudovkin e Rudolph Arnheim. Assim, o filme está repleto de cenas em bastidores de estúdios inserindo esse espaço oculto (hoje já tão banalizado pela publicidade): fica uma sensação de alargamento do recorte da tela, no intuito de alcançar um recorte mais amplo. E quando Hollywood aprendeu a falar já começou cantando. No segundo momento, em 1952, quando o filme foi concebido e lançado, Hollywood estava no ápice de sua Era de Ouro dos musicais – iniciada depois da Segunda Grande Guerra depois de “um estudo que indicava que as comédias musicais eram as favoritas entre todos os tipos de histórias, de modo que a MGM reviveu o gênero. Com Gene Kellye e Fred Astaire como principais dançarinos, desafiou a concorrência da [recém lançada] televisão com belas e sofisticadas produções musicais em cores, duas e às vezes três das quais figuraram anualmente entre os maiores sucessos de bilheteria da indústria” (Sklar, 1975, p. 329). E repito: essa idéia de colocar dinheiro e arte em lados estritamente opostos, como se a presença do primeiro invalidasse a existência do segundo (e vice-versa) pode se tornar, dependendo do contexto aplicado, um conceito deveras equivocado. Ou melhor, um pré-conceito (rá).
Esse momento próspero em Hollywood prosseguiu firme antes decair no final da década de 50 / começo da década de 60. Até então foram produzidos os ditos melhores filmes do gênero de todos os tempos como Marujos do Amor (1945), Desfile de Páscoa (1948), Um Dia em Nova york (1949), Sinfonia de Paris (1951), o próprio Cantando na Chuva (1952), A Roda da Fortuna (1953), Cinderela em Paris (1957), Meias de Seda (1957), My Fair Lady (1964) ou A Noviça Rebelde (1965) entre outros (para mais detalhes dos bastidores, leia o conjunto de artigos de Ruy Castro que formam “Toró Mágico: Cantando na chuva”. Nada que eu tente escrever aqui vai chegar perto do trabalho de apuração que ele fez: quase chamando Gene Kelly de ‘brother’). No terceiro momento, hoje, só consigo enxergar que o musical se tornou uma seqüência de tentativas ‘produto pelo produto’ com toda uma apelação teenage: onde não importa a técnica, a história, as piadas, o cinema, nada. Basta uma seqüência de rostos bonitinhos, cortes, cortes, cortes, revistas, celebridades, adolescentes enlouquecidos. A única exceção são diretores famosos que resolvem brincar com o gênero, como os já citados Alain Resnais e Woody Allen e mais recentemente Tim Burton. O resultado nem sempre é dos melhores. Obviamente posso está sendo precipitado (e novamente preconceituoso) por desconhecer e não buscar (por pura falta de interesse) uma série de lançamentos, mas High School Musical é o símbolo maior dessa opinião. E, infelizmente, vi não só essa produção como sua sequência desastrosa. Há um vazio desconcertante. Só de pensar que estão preparando o número três da franquia, que milhões de dólares estão sendo investidos nessa bobagem, passo a sentir que aquela nostalgia ao qual me referi ironicamente no início do texto começa a me abater também: mas diferente do Rubens, não de maneira otimista.
Cantando na Chuva. EUA, 1952. Roteiro: Adolph Green e Betty Comden. Direção: Gene Kellye e Stanley Donen Produtor: Artur Freed. Elenco: Gene Kelly, Jean Hagen, Donald O’Connor, Debbie Reynolds, Cyd Charisse. 103 minutos.
Referências bibliográficas:
CASTRO, Ruy. Um filme é para sempre. Cia das Letras, 2006.
SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo, SP: Cultrix, 1975.