Diferentemente do formalismo russo que não é só russo e da avant garde francesa que tampouco é apenas francesa, o expressionismo alemão (idem), em seu âmbito cinematográfico, não se desenvolveu associando os filmes com uma produção teórica sobre a especificidade do cinema. Entretanto, nem por isso deixou de assumir uma postura estética que põe em xeque a estrutura e os meandros do modelo clássico da representação: em convergência com o modernismo, cuja a arte-ventre é o próprio cinema, abandona-se por completo o viés realista ao caminhar entre o onírico e o sombrio abusando das sombras como recurso dramático e das deformações em cenários claramente falsos. Apesar de não se constituir como novidade para nós, espectadores contemporâneos, especialmente pela difusa rede de influências que o legado expressionista postulou, não podemos deixar de perceber a substituição dos ângulos horizontais pelos diagonais acentuando a instabilidade de nossos passos pelas vielas de um mundo misterioso em preto e branco – um mundo que se assemelha a um pesadelo bem maquiado que nos seduz e nos intriga. Assim sendo, da mesma forma que aponta para frente, para o cinema trash e de horror, para o cinema noir, para Orson Welles, o expressionismo alemão que não é só alemão finca seu lado teórico traduzindo em imagens parte do dilema do mito da caverna de Platão, resgatando o antecedente filosófico essencial da arte cinematográfica, o princípio da ilusão, para lançar seus holofotes sobre a relação de confiança/engano que se estabelece entre o espectador e a representação da realidade ao qual ele se dispôs a assistir.
Assim sendo, O gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiener se firma, continuando os passos iniciados por Estudante de Praga (1913), de Stellan Rye e Paul Wegener e O Golem (1915), de Paul Wegener and Henrik Galeen, um tratado para além de uma tendência, ao tomar abertamente o antirealismo como norte e ao imprimir na tela a exacerbação dos sentimentos reprimidos que se amontoam na mente. Todo clima externo parece se diluir de uma fonte interna. Dizem por aí nos livros de história e fofoca do cinema que o diretor é o menor dos responsáveis pela concretização do filme, que os créditos deveriam ser dados de maneira coletiva para Rudolf Meinert e Erich Pommer (produção), Carl Mayer (roteiro) e especialmente para Walter Rohrig e Hermann Warm (cenografia). Na dúvida, ficam os nomes. Mas o fato é que independentemente de quem fez e de quem deixou de fazer, não quero cair nessa baboseira de defender o autor, o resultado plástico do filme se associa a um modelo narrativo que confunde a instância da realidade com a instância do delírio, estabelecendo um dos primeiros flertes entre a loucura e o sonho no cinematógrafo. Para atingir um nível ainda mais profundo e complexo, Caligari nos deixa a dúvida se é em si uma história ou uma história dentro de outra. Somos lançados ao limbo do entendimento enquanto que Hollywood entregava tudo mastigado na boca de sua platéia. Quantos filmes – pelo bem ou pelo mal – já não beberam dessa rebuscada maneira de costurar as estruturas cinematográficas? Na linha deste projeto estético, David Lynch reinventa a representação a cada filme.
Um dos trunfos maiores da arte expressionista, arte que se funda no abismo paradoxal entre a racionalidade e a emoção, é sua capacidade de despertar reações ambíguas em seus apreciadores, fazendo o menos convencional se manifestar como mais humano. O famoso quadro 'O grito' (1893), de Edvard Munch, por exemplo, desliza facilmente entre o desespero fluido das correntes de tintas claras ao desconcerto visual em relação à figura andrógena do centro. Não se trata da representação do homem, mas do desespero do homem. Em O Gabinete do Dr. Caligari as ruas são estreitas, as casas aglomeradas umas sobre as outras, os personagens grandes demais em relação à estrutura em sua volta, os ambientes internos e externos das locações não segue lógica alguma de medida. Temos rostos teatralmente maquiados a fundo a fim de ceder uma expressão além da real: uma ode à distorção e ao exagero. O filme trata de observar não o Cesare, sonâmbulo, mas a dor em seus olhos enrugados; não Caligari, mas a gana e ambição contidas em sua face maquiavélica. O conjunto de elementos nos transporta para outro tempo, para outro século, quase como se instituísse não só uma teoria social da representação, mas uma teoria histórica da representação.
Como é possível perceber graças às reviravoltas recorrentes nas narrativas expressionistas, o sujeito não se mostra cartesiano e fixo numa posição imutável, se deixa levar por seus sentimentos, há uma óbvia superação da dicotomia entre bem e mal. As personagens deambulam sem se firmar, em definitivo, sobre nenhuma das duas extremidades, afundam em um moinho de incertezas e contradições e é de dentro dessas incertezas, de dentro de toda escuridão, no caso de Caligari, que aparece um tom alvo, uma luz que parece não se encaixar com o resto do ambiente do filme. Trata-se da mulher, em seu vestido branco, que termina seqüestrada pelo sonâmbulo Cesare. Enquanto a carrega nos braços – passando pelo cenário muito parecido com o do clipe Otherside, do RHCP – desenvolve-se a tensão máxima entre o claro e o escuro, alterando o contraste e distinguindo ainda mais ambas as cores. O sonâmbulo hesita em seu ato homicida, não consegue matar aquela mulher, se vê desperto, apaixonado. Já a turba de homens tomado pela histeria não hesita sobre ele. Tanto a película de Wiener, como outras de Murnau e Fritz Lang lançam seus focos sobre os riscos da justiça humana exercida no calor da emoção - algo que apesar do processo civilizador continua a acontecer na forma dos linchamentos públicos.
Na cena do assassinato de Alan (que havia recebido mais cedo, uma profecia de que iria morrer até o fim do dia), apenas a sombra de Cesare aparece refletida na parede. A sombra toma um valor indicial, deixando clara a presença do sonâmbulo no ambiente e de suas verdadeiras intenções. Por um segundo, a sombra torna-se o personagem, torna-se tão presente quanto qualquer outro elemento narrativo . O mesmo acontece no filme M, o vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (um dos ícones do expressionismo), na cena em que o assassino aborda a criança. Mostra apenas as sombras dos envolvidos e em seguida o balão subindo, significando o infeliz destino da garota. As metáforas e a sutileza em usá-las parece ser uma outra característica dessa tendência.
O próprio expressionismo alemão aparece como uma metáfora da Alemanha devastada pela Primeira Grande Guerra, há todo o ar pessimista, toda construção desesperada. Além disso, há a construção do ‘ser maldito’ presente em Caligari; em M; em Nosferatu – o ser maldito que funciona meio como uma antecipação do que estaria por aparecer na nação germânica. Funcionaria o expressionismo como denuncia ou como consentimento? Talvez a resposta não seja tão cartesiana, talvez ela não esteja inclusa no sistema binário ocidental. Um último ponto que precisa ser enfatizado está presente no final do filme e, de certa forma, desconstrói todo o filme. Ao menos, do ponto de vista narrativo. Tudo não passa de uma mentira, de uma alucinação na cabeça de um louco internado num manicômio. Caligari não é mais que o diretor do recinto, a mulher amada não é mais que uma interna, Cesare não mais que um sonâmbulo a ser estudado. O roteiro nos engana, brinca com todo ‘o real’ da película, transforma todo o sentido até então discutido.