segunda-feira, 20 de setembro de 2004

Sobre sombras e limbos

Diferentemente do formalismo russo que não é só russo e da avant garde francesa que tampouco é apenas francesa, o expressionismo alemão (idem), em seu âmbito cinematográfico, não se desenvolveu associando os filmes com uma produção teórica sobre a especificidade do cinema. Entretanto, nem por isso deixou de assumir uma postura estética que põe em xeque a estrutura e os meandros do modelo clássico da representação: em convergência com o modernismo, cuja a arte-ventre é o próprio cinema, abandona-se por completo o viés realista ao caminhar entre o onírico e o sombrio abusando das sombras como recurso dramático e das deformações em cenários claramente falsos. Apesar de não se constituir como novidade para nós, espectadores contemporâneos, especialmente pela difusa rede de influências que o legado expressionista postulou, não podemos deixar de perceber a substituição dos ângulos horizontais pelos diagonais acentuando a instabilidade de nossos passos pelas vielas de um mundo misterioso em preto e branco – um mundo que se assemelha a um pesadelo bem maquiado que nos seduz e nos intriga. Assim sendo, da mesma forma que aponta para frente, para o cinema trash e de horror, para o cinema noir, para Orson Welles, o expressionismo alemão que não é só alemão finca seu lado teórico traduzindo em imagens parte do dilema do mito da caverna de Platão, resgatando o antecedente filosófico essencial da arte cinematográfica, o princípio da ilusão, para lançar seus holofotes sobre a relação de confiança/engano que se estabelece entre o espectador e a representação da realidade ao qual ele se dispôs a assistir.

Assim sendo, O gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiener se firma, continuando os passos iniciados por Estudante de Praga (1913), de Stellan Rye e Paul Wegener e O Golem (1915), de Paul Wegener and Henrik Galeen, um tratado para além de uma tendência, ao tomar abertamente o antirealismo como norte e ao imprimir na tela a exacerbação dos sentimentos reprimidos que se amontoam na mente. Todo clima externo parece se diluir de uma fonte interna. Dizem por aí nos livros de história e fofoca do cinema que o diretor é o menor dos responsáveis pela concretização do filme, que os créditos deveriam ser dados de maneira coletiva para Rudolf Meinert e Erich Pommer (produção), Carl Mayer (roteiro) e especialmente para Walter Rohrig e Hermann Warm (cenografia). Na dúvida, ficam os nomes. Mas o fato é que independentemente de quem fez e de quem deixou de fazer, não quero cair nessa baboseira de defender o autor, o resultado plástico do filme se associa a um modelo narrativo que confunde a instância da realidade com a instância do delírio, estabelecendo um dos primeiros flertes entre a loucura e o sonho no cinematógrafo. Para atingir um nível ainda mais profundo e complexo, Caligari nos deixa a dúvida se é em si uma história ou uma história dentro de outra. Somos lançados ao limbo do entendimento enquanto que Hollywood entregava tudo mastigado na boca de sua platéia. Quantos filmes – pelo bem ou pelo mal – já não beberam dessa rebuscada maneira de costurar as estruturas cinematográficas? Na linha deste projeto estético, David Lynch reinventa a representação a cada filme.

Um dos trunfos maiores da arte expressionista, arte que se funda no abismo paradoxal entre a racionalidade e a emoção, é sua capacidade de despertar reações ambíguas em seus apreciadores, fazendo o menos convencional se manifestar como mais humano. O famoso quadro 'O grito' (1893), de Edvard Munch, por exemplo, desliza facilmente entre o desespero fluido das correntes de tintas claras ao desconcerto visual em relação à figura andrógena do centro. Não se trata da representação do homem, mas do desespero do homem. Em O Gabinete do Dr. Caligari as ruas são estreitas, as casas aglomeradas umas sobre as outras, os personagens grandes demais em relação à estrutura em sua volta, os ambientes internos e externos das locações não segue lógica alguma de medida. Temos rostos teatralmente maquiados a fundo a fim de ceder uma expressão além da real: uma ode à distorção e ao exagero. O filme trata de observar não o Cesare, sonâmbulo, mas a dor em seus olhos enrugados; não Caligari, mas a gana e ambição contidas em sua face maquiavélica. O conjunto de elementos nos transporta para outro tempo, para outro século, quase como se instituísse não só uma teoria social da representação, mas uma teoria histórica da representação.

Como é possível perceber graças às reviravoltas recorrentes nas narrativas expressionistas, o sujeito não se mostra cartesiano e fixo numa posição imutável, se deixa levar por seus sentimentos, há uma óbvia superação da dicotomia entre bem e mal. As personagens deambulam sem se firmar, em definitivo, sobre nenhuma das duas extremidades, afundam em um moinho de incertezas e contradições e é de dentro dessas incertezas, de dentro de toda escuridão, no caso de Caligari, que aparece um tom alvo, uma luz que parece não se encaixar com o resto do ambiente do filme. Trata-se da mulher, em seu vestido branco, que termina seqüestrada pelo sonâmbulo Cesare. Enquanto a carrega nos braços – passando pelo cenário muito parecido com o do clipe Otherside, do RHCP – desenvolve-se a tensão máxima entre o claro e o escuro, alterando o contraste e distinguindo ainda mais ambas as cores. O sonâmbulo hesita em seu ato homicida, não consegue matar aquela mulher, se vê desperto, apaixonado. Já a turba de homens tomado pela histeria não hesita sobre ele. Tanto a película de Wiener, como outras de Murnau e Fritz Lang lançam seus focos sobre os riscos da justiça humana exercida no calor da emoção - algo que apesar do processo civilizador continua a acontecer na forma dos linchamentos públicos.

Na cena do assassinato de Alan (que havia recebido mais cedo, uma profecia de que iria morrer até o fim do dia), apenas a sombra de Cesare aparece refletida na parede. A sombra toma um valor indicial, deixando clara a presença do sonâmbulo no ambiente e de suas verdadeiras intenções. Por um segundo, a sombra torna-se o personagem, torna-se tão presente quanto qualquer outro elemento narrativo . O mesmo acontece no filme M, o vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (um dos ícones do expressionismo), na cena em que o assassino aborda a criança. Mostra apenas as sombras dos envolvidos e em seguida o balão subindo, significando o infeliz destino da garota. As metáforas e a sutileza em usá-las parece ser uma outra característica dessa tendência.

O próprio expressionismo alemão aparece como uma metáfora da Alemanha devastada pela Primeira Grande Guerra, há todo o ar pessimista, toda construção desesperada. Além disso, há a construção do ‘ser maldito’ presente em Caligari; em M; em Nosferatu – o ser maldito que funciona meio como uma antecipação do que estaria por aparecer na nação germânica. Funcionaria o expressionismo como denuncia ou como consentimento? Talvez a resposta não seja tão cartesiana, talvez ela não esteja inclusa no sistema binário ocidental. Um último ponto que precisa ser enfatizado está presente no final do filme e, de certa forma, desconstrói todo o filme. Ao menos, do ponto de vista narrativo. Tudo não passa de uma mentira, de uma alucinação na cabeça de um louco internado num manicômio. Caligari não é mais que o diretor do recinto, a mulher amada não é mais que uma interna, Cesare não mais que um sonâmbulo a ser estudado. O roteiro nos engana, brinca com todo ‘o real’ da película, transforma todo o sentido até então discutido.

sábado, 18 de setembro de 2004

Lista de Mudanças

Preciso cortar o cabelo e criar o costume de cortá-lo em intervalos de tempo menores; preciso fazer a barba ou apenas aprender a apará-la o bastante quanto quero, o bastante quanto tento e nunca consigo – não nego o gosto do ar ralo de meus pêlos, dessa tal mistura de inocência e sujeira bem vestida em minha face. Preciso pegar a minha carteira de reservista do exército o quão antes puder, fazer um novo passe fácil o quão antes puder e passar menos horas na internet sem fazer absolutamente nada. Preciso ir num dentista, num dermatologista, num endocrinologista. Preciso me matricular na academia e tentar manter o ritmo por alguns meses – algumas semanas, alguns dias, alguns números. Preciso engordar só um pouquinho e diminuir a masturbação intensiva; preciso abandonar a neurose da balança e ao menos fingir vigor no decorrer de meus dias.

Preciso ler mais e mais e ainda mais rápido. Preciso comprar (ou ganhar =P) uma gaita (e/ou uma flauta), aprender a tocá-las e tentar não desistir em uma semana – afinal quem nunca quis sair pululando no meio da grama abraçado aos seus próprios chiados? Preciso ver alguns filmes para a cadeira de cinema, comandada pela suposta noiva de Tarantino e continuar a ver outros filmes que vejo só para mim. Preciso ter prontas sobre minhas mãos antes do Natal, as camisas de ‘Lain’ e o sorriso irônico de Jim Morrison. Preciso ir à feirinha da Bom Jesus e espero realmente que os trapezistas de linhas ainda estejam presos no pequeno varal. Preciso deixar de ser refém do que escrevo, do que sonho nas noites insônes e do que penso sem ninguém saber. Preciso não me preocupar tanto com o que eu bebo, com o que fumo ou com o que beijo. E preciso mandar mais pessoas a merda, d-e-l-i-c-i-o-s-a-m-e-n-t-e.

Preciso prestar mais atenção nas aulas da universidade, tentar ser um pouco mais responsável e me dedicar ao espanhol – e não estou decidido se estou à procura de um estágio. Preciso estimular meu charme ainda que não saiba bem qual seja – talvez o melhor caminho seja mesmo descobri-lo. Talvez deixe pra mais tarde. Preciso comer mais frutas pela manhã e pela noite, tomar mais água o dia inteiro e dormir bem menos horas do que o habitual. Seria uma boa se pudéssemos adiar a preguiça. Preciso variar os meus dias, me libertar de uns típicos estigmas e colocar os sempre velhos discos novos para tocar. Na verdade, eu preciso pegar uns ônibus errados de vez em quando e me perder achando tudo muito lindo. Talvez eu precise apenas dos sorrisos não falsos e dos abraços mais fortes. Preciso das pessoas, das árvores que sempre estiveram por lá e do clima de interior no coração da cidade. Preciso das histórias bonitas e preciso começar. Realmente, pedras são ótimas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Era uma vez o manifesto ideológico...

Se eu conseguisse descrever uma cena de cerca de seis minutos, tida com uma das mais significativas da história do cinema, se em palavras pudesse transmitir bem a presença excessiva de cada corte, o trabalho minucioso de montagem, a expressão caricata nos rostos em close, a variação de distância entre a câmera e os corpos agitados e a frieza dos algozes diante de suas vítimas, quem, além dos cinéfilos de carteirinha, poderia adivinhar que estaria me referindo a um filme soviético, mudo, preto e branco, da década de 20 e não a um videoclipe recém-lançado na MTV? Pois é, estamos falando da famigerada escadaria de Odessa, o quarto ato d'O Encouraçado Potemkin (1925), falando de Sergei Eisenstein que, reunindo influências das mais diversas a partir de âmbitos artísticos, políticos e científicos, ascendeu como efígie de uma vanguarda cinematográfica, o formalismo russo, fazendo de seu peculiar controle como cineasta também uma teoria sobre o cinema. Assim sendo, temos um diálogo entre a dialética de Hegel rearranjada por Marx com o teatro dramático de Meyerhold, uma trajetória que parte do engajamento político estimulado por Lenin e que o leva a participação no Prolekult, uma curiosidade intelectual que o faz carregar consigo a composição dos ideogramas do teatro kabuki, a teoria dos reflexos condicionados de Pavlov e as experiências de Kuleshov com justaposição de imagens.

Não era preciso reproduzir a realidade, criar um duplo translúcido e axiológico, mas sim, criar conceitos tomando como lógica o encontro de imagens, encontro visceral se necessário, e fazendo da realidade objeto de discurso ideológico. Eisenstein não foi um cineasta qualquer, fora um iconoclasta dos valores burgueses e um eremita dentro da ditadura soviética que passou a impor o realismo como modelo estético ideal das (e para as) massas. Se durante a década de 20, após a Revolução de 1917, se consolidou como o cineasta da Revolução, entrou na década seguinte, na era Stálin, como um dos artistas mais perseguidos dentro da URSS. Vinicius de Moraes escreveu certa vez que "a luta contra a 'estética formal' no filme russo foi em grande parte a luta contra a influência de Eisenstein", especialmente pelo cineasta ter se firmado como teórico da montagem descortinando a linguagem cinematográfica clássica para a forma como a conhecemos/entendemos hoje. Entretanto, mesmo com toda pompa do cânone não podemos deixar de pontuar como, em seus filmes, existem momentos de pouca conotação, de poucas imagens-idéias, afinal considerar O Encouraçado Potemkin como uma seqüência interminável de imagens vanguardistas, um espetáculo cinematográfico a cada milésimo de segundo é apenas referendar as repetidas frases que não passam de uma opinião socialmente estabelecida e reproduzida nos antros do exercício da crítica. De qualquer forma, nós, jovens de vinte e poucos anos, crescidos na era da estética do videoclipe, da sobrecarga de informações a cada corte, da hipertrofia de imagens que deixam de nos sensibilizar pelo excesso em oposição à raridade, temos os olhos já acostumados à velocidade e ainda assim, a escadaria de Odessa não poderia ser mais rápida.


Diferentemente de Pudovkin, diretor conterrâneo e contemporâneo, que ligava o conceito de montagem a construção – uma construção dramática que usava de personagens isolados num microcosmo (a mãe, o líder) para lançar mão de uma parábola social - Eisenstein partia de personagens coletivos (os operários, os marinheiros, os revolucionários), remontando um esboço de 'povo' em sua concepção de montagem ligada à colisão: “do choque de duas imagens distintas surgia algo novo no inconsciente do público” (Merten, 2003, p. 52). Em A Greve (1924), o diretor funde/alterna o rosto de um homem com a face de uma raposa, o rosto de um homem com a face de uma coruja, o rosto de um outro com a face de um cachorro para dar uma dimensão da personalidade dos espiões infiltrados na fábrica. Além disso, cria a sequência de imagens mais poderosa de sua filmografia, e normalmente subvalorizada, ao estabelecer um paralelo entre uma multidão de operários sendo reprimida/assassinada por hordas de policiais com a de um touro sendo morto num matadouro: correria, faca no pescoço do animal, sangue escorrendo, uma criança atirada de um prédio, tiros, mãos para alto, um vasto campo de mortos. A violência contra o proletariado não é amenizada tanto para associar a força da imagem em si com a força com a qual são montadas em sequência, como para reforçar uma realidade sociopolítica cruel que tornara imprescindível a Revolução Bolchevique em 1917.

A justaposição dessas imagens-idéias, cria incondicionalmente uma resposta talvez não conceitual, mas emocional da platéia e Eisenstein anunciava não procurar por uma platéia passiva, sem sensibilidade, mas uma platéia de co-criadores, de co-pensadores. Na prática, todavia, a partir dos estudos de Pavlov, o cineasta acreditava conseguir moldar/condicionar as reações de quem presenciava suas construções imagéticas, diminuindo o peso das idiossincrasias individuais em busca da ascensão de um ideal em comum, ou seja, queria - e fora contratado para - lançar ao proletariado um manifesto ufanista, um referencial artístico de inspiração à luta socialista. Só que é preciso entender a variação histórica que nos liga a tais obras, afinal já não há mais um corpo proletariado interessado, especialmente após o fim da experiência real do socialismo no regimento das nações. Das lutas, restaram apenas a utopia, dos líderes, apenas as epígrafes. O marxismo dispensou a aproprição revolucionária, ainda que as unhas do diretor russo continuem a nos tocar com a força que só temos em momentos de profunda raiva. E não se faz pelo lado ideológico, mas pelo lado narrativo, técnico, histórico, cinematográfico e poético. Estamos descobrindo novos signos no filme em si e no filme inserido em um novo contexto: reinterpretando os significados, remodelando os paradigmas. Sergei Mikhailovitch Eisenstein agora é outro.

“A montagem é, para ele, o poder criativo do cinema, o meio pelo qual as 'células' isoladas se tornam um conjunto cinemático vivo; a montagem é o princípio vital que dá significado aos planos puros” (Augusto, 2004, p. 61). Essa talvez seja a marca inegável do diretor e o paradigma estabelecido por tal a todo o cinema. Alguns segundos e um corte, alguns mais e outro. E outro. E outro. Ora meramente figurativo ou circunstancial, ora magistralmente bem pensado, o corte se acumula fazendo com que hora alguma se mostre desnecessário, aleatório. E Eisenstein não se prende apenas a montagem para lançar suas idéias – um casal junta, no meio da sala, objetos da casa que possam ser vendidos para conseguirem dinheiro, a mulher esconde um vestido que causa confronto com o marido; no meio da briga terminam colocando o próprio filho de colo no monte a ser vendido sem perceberem. Essa cena parece previamente não pensada. Talvez até seja. Acredito que não.

A Greve funciona como um baú de diretrizes, um baú de possibilidades e ideias não só que o diretor voltaria a explorar em suas obras seguintes, mas também idéias vigentes em outros cinemas vanguardistas da época. É um filme que desliza na linha dos detalhes e do virtuosismo, onde absorvemos muitas proposições formais e discursivas que se tornariam completas em cenas imponentes e onde existe um apuro técnico assustador ao olharmos o ano do filme: produzido em 1924, lançado em 1925. Há um trabalho com sombras, com paradoxos, iluminação contrastando entre o claro e escuro e ângulos inusitados da câmera. Obviamente dialogando com o expressionismo alemão. A greve talvez funcione como um sumário do que viria ser toda a obra cinematográfica de Eisenstein, sendo muitas das idéias presentes ora exercidas ainda mais profundamente, enquanto que outras jamais voltariam a ser reutilizadas em seus filmes posteriores. Seja do maniqueísmo (capitalismo selvagem x socialismo libertário) ao trabalho minucioso de montagem; Eisenstein e seus olhos ainda esperançosos pela revolução estavam por completo representado ali. Mas o tempo faria com que seus olhos fossem outros.

No Encouraçado Potemkin, a teoria de montagem de Eisenstein toma ares ainda mais profundos. Existe uma ligação dialética entre os cinco atos; uma estrutura onde se desenrola uma situação, uma tensão e uma reação oposta. Uma parte se liga a outra dessa maneira (marinheiros encontram os vermes, se recusam a comer o que resulta no quase fuzilamento de alguns, o que não acontece pois há um grito revolucionário que desencadeia uma rebelião). Por fim, no último ato, com a expectativa de confronto entre o Potemkim e a esquadra czarista há não o combate tão tangente e sim um grito de união: 'irmãos'. É cafona, mas é exatamente o sentimento que os 'camaradas' russos precisavam representar para si mesmos.

Assim como em A Greve ainda que carregue uma carga política bem direcionada, que o faz panfletário em termos ideológicos, o filme já não soa como um manifesto ‘real’, ou possível de ainda reunir entusiastas. Seria bastante anacrônico. Talvez já tenha soado como tal, mas hoje não mais. Para sermos conscientes devemos entender o sentido original do filme – encomendado pelo governo para saudar os vinte anos da revolta do Potemkin, acontecida em 1905, porém para um jovem na pós-modernidade esse sentido não faz diferença alguma, na verdade, esse sentido nem existe dependendo do interesse cinéfilo dele. No contemporâneo esse jovem irá construir seu próprio sentido dentro do filme de acordo com a sua vivência – e livre da questão ideológica, poderá reparar em outras questões, hoje, mais relevantes dentro da película (inclusive sobre o papel – ou justamente o esvaziamento – da ideologia em nosso tempo). O Encouraçado Potemkin é um filme político sim, mas não um manifesto ideológico. Pelo menos não em 2004.