Silêncio e o escuro do presságio da aurora. Os pássaros em verde e branco pela janela, as formigas de uma leve esquizofrenia caminhando em suas mãos e o sono de seu cachorro diabético deitado ao lado da cama. Ainda não era obesidade mórbida. Estava um pouco espantado por ter acordado por si mesmo, por se sentir um tanto leve e por não estar com resquícios de dor de cabeça. Nenhum grito descartável, nenhum choro ordinário. Nada. O calmo e o vazio descansavam nas paredes do quarto onde os quadros pintados permaneciam sombrios e ultrapassados. Suas ideias estavam escondidas em páginas de cadernos que já não usava e pela eternidade ficariam lá sem nascer para os olhos do mundo. Sem nascer aos seus próprios olhos de criador e às suas mãos de criatura que segue normas e cumpre protocolos. Seus quadros expostos eram as grades de sua própria prisão. O relógio antigo havia parado às quatro da manhã. Todos estavam em seus ninhos. As velas e o charme que não se vê nas lâmpadas. E com aquela fonte de luz empunhada em suas mãos desvendou a escuridão de seu próprio ser, de sua própria casa que tinha que chamar de lar. Adorava a penumbra. A incerteza de cada passo e a confiança em cada um dos pés. Adorava o silêncio daquela hora. Em dezoito anos de vida eram dezoito anos vivendo naquele mesmo lugar. Conhecia cada pedaço, cada encosta e cada obstáculo. Vivia farto disso.
Pôs a vela sobre a pequena mesa da sala ao lado do vaso de flores mortas que continuavam ali dia após dia. Ninguém parecia perceber a falta de vida, ninguém se importava em tirá-las de seu jazigo. Estavam mortas. Abriu a geladeira e viu dezenas de frutas podres, molho de tomate fora da validade, queijos mofados. Ninguém notava coisa alguma, sequer a falsidade de seus sorrisos. Seria o último a tocar em suas pétalas já sem cores. Os galhos de árvores dançando em sombras, os postes indo dormir e o silêncio escapulindo por entre as brechas das portas fechadas. Acendeu um cigarro sentado no sofá enquanto lia um livro sobre Rimbaud. Por três dias ele não era de escorpião. Acabara sendo de libra mas com uma tendência escorpiana bem aguçada. Talvez fosse seu ascendente, talvez não. Rimbaud rompia em absinto enquanto Ícaro ainda caía do céu com poucas cervejas. Nasceram no mesmo dia. 20 de outubro e alguma hora qualquer em algum minuto sem importância. Apenas alguns séculos os separavam, apenas alguns acasos os tornavam pessoas completamente diferentes. Completamente. Passava as páginas sem pressa enquanto, igualmente sem pressa, os primeiros raios do sol pareciam brotar. E para as pulgas de Anaximandro, o cachorro diabético; para as borboletas nas papoulas vermelhas do jardim da praça até os fungos dos afrescos na capela sistina ou os leões na selva africana; o sol costuma trazer o fio perdido na noite anterior. O fio de esperança que insiste em nascer todos os dias.
Tinha tido um sonho tão sincero e de um encanto suave ainda não conhecido por seus olhos. Isso o enchia de medo. Era fato que sua existência não era das mais felizes. Era fato que tinha medo do gênero humano e se incluía nesse medo. Era de fato um solitário e mesmo que em sua identidade estivesse escrito “Ícaro” em letras marcadas, ele não sabia bem quem era e a cada dia parecia saber menos ainda. Desde pequeno o reflexo de suas indas e vindas se mostravam em forma de pesadelos à noite. O fim em espasmos, tremores, mãos molhadas e as palavras de sua mãe: “calma, meu filho”. Parecia uma piada justamente ela estar pedindo calma. Seus sonhos estavam a ser melhores que sua própria vida. Lembrou das máscaras que são colocadas viradas contra o rosto, lembrou das estátuas que se fingem de mortas, lembrou de si mesmo contando as horas para ir dormir. Ligou o rádio e apagou a vela já desnecessária. Um pouco de ruído. Não estava bem sintonizado e dava um ar de primórdios daquele aparelho. Talvez fosse o vento, talvez não. Mexeu na antena quando finalmente pode ouvir a música que tocava nitidamente. Era The doors. The end. Incrível como a madrugada era cheia de segredos e mistérios que por ventura só se mostravam assim. De alguma maneira, quase como um ataque de narcolepsia, o sonho reviveu por completo em sua mente e deu laços e laços em seu pescoço. Dormiu enforcado.
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