Um pouco desconexas, a dança e a lembrança, a neblina que envolvia os nossos corpos, nos fazendo repetir inúmeras vezes a expressão 'lugar do caralho'. Vicente caiu de costas no tapete persa dos meus pais com a canção ainda na boca; caiu por entre nossas bolsas, nossas roupas, caiu e teve as frutas de um lado e os garranchos poéticos do outro. Sorriu por não estar com o violão na mão e lembrou que ainda não tínhamos bebido do vinho, que não tínhamos degustado da "periquita" que ganhara como presente de uma tia. Eu secretamente preferiria o velho "carretier" e suas baratas, lembrava mais intimamente a juventude das sarjetas do Recife velho, mas não faria objeção alguma. Lucia estava perdida em meus braços e eu estava perdido no cheiro de canela que tinha o seu pescoço. No cheiro de cravo da índia que tinha o seu colar. No cheiro de sexo que meu corpo exalava junto ao dela. Tínhamos de brindar cem mil vezes antes de ir. Vicente trouxera o vinho, Lucia trouxera o chá e eu trouxera eles dois para junto de mim. Esquecemos de nosso apartamento pequeno, de nossas coisas simples, do problema no encanamento do banheiro, dos gritos cada vez mais altos no emprego, da falta de emprego e das topadas na saída do hospital. Tiramos todas as roupas e deitamos todos juntos. Nada poderia ter sido melhor. Uma xícara, três taças e uma piada. Um brinde de vinho e alguns goles no chá. Uma risada. Lucia cantava sozinha com uma rosa em mãos. Crystal ship era a que ela mais gostava. Vicente se levantou um pouco tonto e acompanhou a melodia de maneira disforme com o seu violão. Fui ao lado de Lucia e passamos a ver ao longe o sol escondido por trás das nuvens e imaginamos nosso filho correndo ou gritando no meio da noite com medo da escuridão. A paternidade era sem dúvida o meu gozo final.
O sol se punha e Lucia já estava adormecendo silenciosa, daquela maneira delicada que me faz achar qualquer mínimo movimento um atentado brusco. Encostei o meu rosto ao seu com o cuidado das costureiras do interior da paraíba e também adormeci. A música já dava sinais de que estava para ir embora, mas Vicente continuava a dançar em seu eterno frenesi, em sua eterna vida intensa, em seu eterno gosto pelo eterno. Estrelas de um cochilo de vinte minutos ou o sonho metalinguístico. Acordei e lembrei como o céu era mais bonito longe do centro da cidade, como as luzes dos postes, dos faróis, dos apartamentos, dos semáforos decepavam o brilho que vinha do universo. Marília havia chegado. Um pouco atrasada é certo, mas chegado. Vicente estava deitado em seu colo com um sorriso maroto e ela tocava de leve o seu violão. Lucia já arrumava as nossas tralhas para voltarmos para casa e eu pensava em adiar aquele momento o máximo possível. Jim tinha terminado sua apresentação e eu perdera o fim e justamente o fim que era só meu. Peguei minha bolsa verde, pus em meus ombros e não esqueci de colocar meus pensamentos engraçados pelo furo. Dobramos o tapete e Vicente tentou carregá-lo sozinho. Rimos das tentativas frustradas até me oferecer para ajudá-lo. Ele correu e me deu um forte abraço que quase me levou ao chão. Naquele instante, pensei que o homem se sente pleno quando tem um homem de um lado e uma mulher do outro, quando cada um deles alternam suas posições, podendo ser pais, filhos, irmãos, tios ou amantes. Tinha descoberto que minha opção era fazer família na rua. Escondi as lágrimas como era de costume. Lucia notou e me deu um suave beijo no pescoço e trouxe seu cheiro de canela para perto de mim. Era uma pena, mas eu ainda não era capaz de chorar na frente das pessoas. Ainda seria e isso era uma promessa. Estávamos prontos para ir, havíamos guardado tudo no fusca azul marinho de Vicente e, antes da ignição, acordei.