quinta-feira, 5 de junho de 2003

Meng Po

Um dia ela acordou como se desconhecesse o homem com quem dormia, como se não lembrasse do parco vestido branco e da fracassada noite de núpcias, olhou as tulipas amarelas de plástico e ignorou a antiga presença dos convidados anônimos e de seus punhados de arroz. Acordou e esqueceu de passar a roupa dele, não fez cuscuz com ovo como suas tias tinham lhe ordenado, tomou sozinha um chá de carqueja, olhou as cuecas no balde - algumas com o fundo bem sujo de merda - e mergulhou em sua antiga rotina. Costumava beijar seus amigos na boca e na testa, tomava banho de açude nas quintas e bebia todos os copos nos finais de semana, misturava cachaça, cerveja, homem, pó, maconha e gaia, passava o domingo esperando o cheiroso almoço de sua mãe, na segunda terminava o sudário da recuperação e na terça adentrava a vidinha saudável, fazia natação e jantava granola com iogurte de laranja com cenoura. A pequena e negra Camila era uma dessas garotas que viviam atrapalhadas com a solidão, tinha uma aliança no dedo e apenas planejava desistir da conformação, de maneira que na fila do supermercado, fazendo a segunda feira do mês sem batatinhas - estava de regime - ignorou os preços abusivos, as marcas repetidas, despertando apenas quando dois garotos atrás dela na fila não paravam de empurrar um ao outro: "onde tu cortou esse teu cabelo não tinha pra homem, não?". Os dois riam, riam e riam, enquanto ela pagava a conta com o cartão do marido. Antes de voltar de bicicleta, tomou um chá de erva doce num quiosque pobretão, observou as famílias saindo pela porta, descendo a ladeira, felizes com seus carrinhos inundados de compras e lembrou de uma palavra que aprendeu com sua avó: perdulário. "Que ou o que despreza seus interesses. Gastador, dissipador". Chegando em casa, fez um bolo, desistiu da cobertura de limão, tomou um chá de hortelã, arrumou a mala do rapaz com quem tinha casado e que sequer lembrava o nome, ele não tinha aparecido depois do expediente, era uma sexta, devia ser normal e ela resolveu passar a noite escrevendo num diário como há anos não fazia. Entre um chá e outro, talvez nunca tivesse feito. Quando o dia já ia amanhecendo, escreveu sua última frase, desejando que o mundo sucumbisse ao apocalipse zumbi "só para sobrar mais chocolate para mim". Tomou seu último chá dos cinco sabores, um chá forte de camomila adoçado com mel, e acordou às seis com a casa absolutamente vazia. Botou um biquini e foi nadar.

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