sexta-feira, 20 de julho de 2012

Corpo em desacordo


(Publicado originalmente no Filmologia)

O pau de Michael Fassbender é o grande ator de Shame. Não apenas quando aparece balançando e balançando perto ou distante da câmera que acompanha a rotina matinal de Brandon, composta basicamente pelos ritos de acordar, ligar a secretária eletrônica, ignorar os recados de sua irmã, caminhar até o banheiro, mijar, voltar para fechar a porta e bater uma punheta durante uma ducha. Não apenas quando o executivo bem sucedido contrata prostitutas, transa na rua com desconhecidas, masturba-se no banheiro do trabalho, acumula pornografia de maneira obsessiva ou flerta como um vampiro entre as estações do trem. Aliás, não são poucos os que a qualquer saída de casa, qualquer mesmo, precisam desejar, encarar e fantasiar ao menos três vezes antes de aterrizarem satisfeitos no destino final. O pau de Michael Fassbender – pau comentado até por George Clooney durante a festa do Oscar – é apenas um símbolo da vontade, do mundo como um circuito de pulsões e da nudez, esse estado natural absolutamente desnaturalizado, cujo estatuto de existência vem atrelado às arestas do contexto. Da mesma forma que assume o papel de violência simbólica, como no caso de todos que se despiram em prisões na frente de seus algozes ou daqueles que foram obrigados a fazerem suas necessidades fisiológicas diante de policiais morbidamente atentos; também anuncia um momento de comum acordo e intimidade, em especial quando finalmente conseguimos transar, com todos os louros, com a pessoa, enfim, amada. Tudo captado por uma direção alumiada e sinóptica de McQueen, que pelo bem ou pelo mal carrega um vigor raivoso típico dos iniciantes. Como um bom consumidor do sexo, Brandon tende a não se sentir satisfeito com sua mercadoria por muito tempo; desenvolvendo, assim, uma jornada ininterrupta na qual quando consegue o que quer, diminui na realização de fato a dimensão que existia durante as expectativas da procura, ou seja, cada vez mais se entrega a decrescente distância temporal entre o brotar e murchar do desejo. Portanto, o apetite se instaura como elemento dominante da sua existência, ao menos até o momento em que Brandon entra em crise com o mercado que frequenta, por perceber o descompasso entre o seu corpo e o tesão pelos outros corpos, condição que mobiliza sua busca dentro de um sistema sexual, cujo afeto surge como uma barreira - e até contradição - do gozo. 

Sem colocar essa camada em primeiro plano, assistir Shame é também uma maneira de formular diálogos do Existencialismo, enquanto ferramenta teórica, com a realidade contemporânea e sua extensão, afinal a inquietação permanece, a aflição permanece, a própria noção de ser autêntico ou inautêntico se arrasta.  Em resumo, a angústia envolve inúmeros patamares da vida cotidiana, pois somos consciente da responsabilidade sobre nossos atos, de modo que a liberdade implica em frustração, o desejo acaba se rendendo à repressão. Brandon nada mais é do que um insaciável consumidor à deriva, um bichinho atachado entre seu ímpeto sexual convicto e aparente, suas escolhas desenfreadas e uma vivência enclausurada na única forma em que conseguiu estabelecer uma rotina. Basta, contudo, a chegada de sua irmã, Sissi, ao mesmo tempo um espelho e uma transgressão do espelho, para o desconforto abater o executivo, seu corpo e, consequentemente, seu pau. A cena em que ela flagra ele se masturbando é de um constrangimento poderoso (na que ele flagra ela tomando banho, novamente é ele quem se constrange), pois a presença dela desencadeia nele uma vontade de lançar diante de seus olhos uma moral supra conservadora, resultando nas viscerais cenas finais em que o rapaz perde o controle de seu próprio corpo. O hedonismo como poética começa a se esfacelar, de modo que quando precisa fugir – e Brandon foge e nega a si mesmo nos primeiros sinais de pressão – , termina por se tornar refém da distância entre sua existência e sua essência, talhando um mundo de plástico onde qualquer coisa pode - e deve -, desesperadamente, dar prazer. Claro que as errâncias respingam no ainda jovem cinema de McQueen, mais pela necessidade de quadros moralmente literais, mais por uma trilha sonora cerimonialista e menos pelo seu rigor exagerado em todos os elementos cinematográficos. Decerto, seus enquadramentos parecem contas matemáticas, seu olhar denuncia uma série de cálculos diante das variantes da pré-filmagem, no entanto, revela-se por outro lado um cineasta da astúcia: na cena em que Sissi canta New York, New York, o britânico gravou com três câmeras de maneira simultânea, estetizando a crueza da improvisação e da espontaneidade através de um olhar cuja estrutura não é necessariamente a do filme para emocionar, mas da indiferença mecânica de um parafuso rodando. Ainda assim, as lágrimas escorrem. 

Com alguma marca já visível desde seus trabalhos em videoarte, especialmente em Bear (1993) com dois homens negros nus se encarando entre o confronto e o desejo, Steve McQueen tangencia um cinema do corpo, não do corpo espelho da alma, mas do corpo em desacordo, corpo de Fassbender que assume o papel de todos os corpos. A degradação aparece atrelada a esse espaço físico que se confunde com a pele da imagem, tendo como fonte a dor, o prazer, a articulação da dor pelo prazer e do prazer pela dor. Novamente coloca limites em jogo. No seu primeiro filme, Hunger, responsável pelo Câmera de Ouro no Festival de Cannes, que premia o melhor debut de cineastas iniciantes, o britânico acompanha os excessos da violência policial sobre membros do IRA, numa prisão da Irlanda do Norte em meados da década de 1980. Alguns apanham nus de vários homens armados, mas a narrativa termina chegando na greve de fome do líder Bobby Sands, rapaz que viveu boa parte de sua vida na prisão e que levou seu protesto até as últimas consequências, morrendo desnutrido pela falta de alimentação aos 27 anos. A obra, contudo, abdica do discurso político e da forma de abordar política, que geralmente resulta no rótulo filme político, para desenvolver, numa comparação sutil entre as atrocidades da democracia e as atrocidades da ditadura, um ensaio do corpo como último e inalienável instrumento de resistência, corpo que possibilita fezes para pintar as paredes, corpo que possibilita a urina a ser jogada no corredor onde os algozes invariavelmente precisam andar. Quando Fassbender se torna irreconhecível – e isso acontece em ambos os filmes -, mas no caso de Hunger, esquelético, cada pequena expressão ressoa em caráter de urgência, seja um trago num cigarro improvisado diante da privação completa, seja o relato do médico quando as feridas começam a pipocar em sua barriga e costas. A luta é a luta pelo direito ao corpo transmutado em corpo político, existência que a Dama de Ferro ignora com sua voz arrogante em discursos que surgem em off, revelando os limites contraditórios de um sistema, que promove inicialmente sucessivas agressões aos presos por parte dos policiais, depois negando suas reivindicações "políticas", negação que gera a nudez, para diante da irreversível condição do corpo definhado, o mesmo sistema passar a exercer um tratamento cinicamente cuidadoso.



segunda-feira, 9 de julho de 2012

Top Five: Alien

 5 - Space Jockey (Alien, 1979) 

Desde pirralho, tenho um puta fascínio pela forma como os astronautas caminham em suas missões fora da Terra, tanto pela lentidão dos passos como pelo volume relativo dos corpos, dados que apontam a leveza e o horror do momento em que privado de suas funções motoras básicas de rapidez e força, o ser humano confronta, enfim, o desconhecido. Há uma gravidade dupla em jogo, um embate do instinto de sobrevivência com uma vulnerabilidade latente, fazendo com que a cena do Space Jockey sirva bem para estabelecer a distinção essencial entre Alien e Prometheus. Enquanto no primeiro, a figura surge sem qualquer referência, rendendo uma das circunstâncias mais enigmáticas de toda franquia, permanecendo por décadas apenas no campo da especulação; no segundo uma figura similar é encaixada dentro de uma narrativa pedagogicamente conduzida, empobrecendo um enigma por sua utilização instrumental e negando a opulência dramática das informações que escapam de nosso campo de compreensão. Há uma ambiguidade em quadro no filme original: a câmera se afasta suficientemente para dar uma visão panorâmica da cripta de 26 metros de altura, de tal modo que o espectador pode ver tudo, os astronautas pequeninos se movem em slowmotion, mas como um desbravador sem seus relatórios, continua não entendendo coisa alguma. Trata-se do primeiro contato entre tripulação da Nostromo e resquícios de vida extraterrestre, um sinal por meio de uma criatura fossilizada claramente não humana, cuja única indicação de causa do falecimento é o ventre explodido por dentro. A cena não dura nem dois minutos, costumava ser chamada de 'Cecil B. DeMille shot' pelos produtores e justamente por isso quase foi cortada, sendo incluída na versão final do roteiro para passar a impressão de que Alien não era um filme B. Para além da trilha sonora que pragueja uma atmosfera de insegurança, Ridley Scott exibe um adormecido encontro de civilizações, encerrado sensatamente com os desbravadores descendo em um buraco escuro, após mexerem nas costelas do enorme Space Jockey. Enquanto isso, na nave mãe, Ripley avisa ao robô, Ash, que o sinal recebido e responsável pela ida deles até aquele lugar não era um S.O.S pedido de ajuda, mas um alerta de mantenha distância.

4 - Nascimento do Alien / Cremação dos Tripulantes (Alien 3, 1992)

Quase todo mundo sabe que David Fincher enfrentou todos os problemas possíveis e imagináveis durante a produção de Alien 3, sabe que o cineasta deu piti e abandonou o projeto antes do início da montagem, sabe que o norte-americano chegou a solicitar a retirada do nome dele dos créditos, mas alguns se esquecem que o estúdio, pouco antes das filmagens, transformou um detalhe da história: numa clara tentativa de colocar em evidência a abstinência sexual e suas consequências em detrimento do fundo teológico da versão inicial, diálogos foram adaptados de última hora e o mesmo cenário distópico concebido como monastério se transformou numa prisão. Ok, Alien 3 é o pior da quadrilogia de longe, mas ao menos é a primeira vez que a criatura sai da escuridão, os criadores parecem mais seguros dos efeitos especiais, possibilitando, assim, o encontro incisivo, cara a cara, entre o alien e Ripley de cabelo raspado, uma aproximação tamanha que somos obrigados a ver a baba escorrendo como nunca tínhamos visto antes. Aliás, tenho minhas dúvidas se deveria escolher essa cena. Contudo, sei que no universo dos fãs, inúmeros defendem o último suspiro do filme, com a tenente se suicidando enquanto nasce um alien de seu peito, alguns falam do nascimento como um instinto de sobrevivência da criatura, fazem um escarcéu, mas, sinceramente, acho muito cafona e a pior maneira de encerrar com coragem uma série. Ainda assim, essa oposição nascimento / morte que marca toda franquia também está presente no momento que resolvi destacar: durante o nascimento do alien, tendo dessa vez um cachorro como hospedeiro e toda gosma sendo elevada ao cubo, os tripulantes que tinham sobrevivido no filme anterior, uma criança que despertou em Ripley o instinto materno e o capitão por quem se sentia claramente atraída, são cremados. A liturgia da cena desfigura o complexo ciclo reprodutivo, um dos trunfos da saga, instaurando uma nova regra: as criaturas podem nascer de qualquer ser vivo, assumindo características particulares dos hospedeiros (como a cena deletada do alien nascendo do boi ou o proto-alien nascido do engenheiro em Prometheus). Assim, as condições ideais e possíveis do facehugger produzir aliens, que pareciam restritas, super restritas, atingem níveis assombrosamente incalculáveis.


3 - Nascimento do 1º Alien (Alien, 1979)


Como comentei na cena anterior, um dos elementos mais soberbos da franquia Alien é o ciclo reprodutivo que culmina no nascimento das criaturas, ciclo que nos é apresentado no primeiro filme, quando em teoria ainda não sabemos como as coisas funcionam. Ridley Scott se aproveita bem disso: vemos os ovos, não sabemos como foram concebidos, aliás, ficamos sem saber até a continuação, vemos então o facehugger - parasita-aranha com boca de vagina - atacando Kane, mas não sabemos o que vai acontecer, qual o mal que será depositado por meio do "pênis" enfiado garganta adentro. Nesse filme, o cineasta usa a seu favor o desconhecimento das regras, enquanto que em Prometheus parece se tornar refém dessas mesmas regras. Depois do ataque, a narrativa entra num rápido anti-clímax para enfatizar o nascimento do alien em relação à morte do capitão (mais uma vez, a clássica oposição): o rapaz estava em coma, mas finalmente acorda como se nada tivesse acontecido, o parasita-aranha com boca de vagina aparece morto, todos os tripulantes vão fazer um desjejum e enquanto comentam amenidades sobre o gosto da comida, Kane passa mal, começa a tremer bastante até que um espicho de sangue explode de seu peito. Há algo de parto com ataque epiléptico que deixa a cena ainda mais perturbadora, todos em volta simplesmente não sabem como reagir, o espectador também não entende direito o que está acontecendo e se tem uma coisa que funciona bem em termos dramáticos num filme de horror e ficção científica é sangue de uma pessoa no rosto de outra (vide Isabelle Huppert no início de O Tempo do Lobo, de Michael Haneke). O mais inusitado é que a cena é finalizada com um humor estranho, o pequeno alien absolutamente fálico, quase um pau mutante com vida própria, encara todos os presentes, suas futuras vítimas e sai correndo - de uma maneira digamos analógica demais - por entre pratos e talheres. Nenhum dos presentes sabe que aquele bichinho de uns 30cm, bichinho que será inicialmente caçado na nave claustrofóbica, crescerá rápido, crescerá muito rápido, transformando-se em pouco tempo na criatura com o melhor design da história do cinema e um dos caçadores mais temidos do universo.

2 - Ellen Ripley x Rainha Alien (Aliens, 1986)


O segundo filme da franquia finca seu pressuposto numa vontade de retorno, a tenente Ripley pisa novamente na superfície da lua do primeiro filme, um lugar que passa pela colonização humana, para mostrar a galinha dos ovos de ouro. Dirigida por James Cameron, a sequência não fica devendo em nada à megalomania presente em outros de seus filmes, seguindo a risca a tradição de continuar uma franquia aumentando o número de mortos, o número de monstros, o número de tudo. Cameron é famoso por não economizar,  se o roteiro do primeiro vinha enxuto, com uma única criatura em um ambiente apertado, o segundo chega inflado, com intermináveis embates e fugas, além do protagonismo da rainha alien (que tem um design bem menos interessante que o alien clássico, mas obviamente carrega toda pompa do tamanho triplicado, com garras, rabo e cabeça hiperbólicos). Daí, mesmo que soe contraditório dentro desse contexto ampliado, perto do final da película há uma cena, daquelas que os espectadores costumam vibrar no sofá, que não é refém do exagero, mas um insight de simplicidade que contorna todo acúmulo de efeitos superlativos: mais uma vez - essa cena se repete em todos os filmes, menos em Alien 3 - Ripley percebe que a criatura - no caso, a rainha - está dentro de sua nave de fuga e, portanto, as duas criaturas femininas precisam se enfrentar. A tenente dentro de uma máquina de carregar peso e a rainha dentro do exagero que é a sua própria forma corpórea. Diferente do que seria feito hoje, com um monte de estripulias e pulos em CGI, a luta é basicamente desenvolvida a base de movimentos lentos, analógicos, uma lentidão que lembra os passos dos astronautas que tanto gosto, de tal maneira que podemos sentir o peso da máquina, para levantar um braço é um sacrifício, as pernas mal se mexem. O embate chega a remeter as lutas de pessoas muito pesadas, sem agilidade excessiva e isso concebe um efeito de tempo diluído dentro de um universo absolutamente artificial. Aliás, um amigo costumava dizer que por causa dessa cena, a tenente Ripley tinha se transformado em seu referencial de masculinidade para a vida. Entendo: numa franquia tida como feminista, envolvendo a luta de uma mulher para sobreviver num universo dominado por figuras fálicas, a capa metálica seguramente representa a incorporação de elementos do universo masculino como defesa para uma materialidade machista.

1 - Clones de Ripley (Alien, A Ressurreição, 1997) 

De vez em quando é bom questionar o lugar de alguns filmes do passado entre um critério racional e o afeto deslavado. Se eu fizesse isso com Alien, A ressurreição certamente o afeto sairia ganhando: considerado pelos fãs como o pior filme da franquia, como já disse, para mim o pior é Alien 3 (desconsiderando Prometheus, claro), confesso meu amor incondicional mesmo não gargalhando uma única vez com os diálogos que fazem piadinhas com a própria franquia. Um dos traficantes de corpos pergunta: "Ripley, é verdade que você já lutou contra essas criaturas? O que você fez?. A tenente responde: "Eu morri". A intenção de humor do filme é péssima, pior até que as piadas de Mulder nos episódios-comédia de Arquivo X, mas independentemente de todas as críticas, tenho uma relação que já ultrapassou o prazer culpado, afinal foi o primeiro Alien que assisti e bem na mesma época de Tropas Estelares, PânicoHalloween H20 e Advogado do Diabo, filminhos de amor da minha pré-adolescência. Daí é aquela coisa, podem falar mal que eu sempre vou arrumar uma desculpa para falar bem, talvez seja até perda de tempo, mas enquanto acusam, defendo primeiro porque os aliens nunca estiveram tão bonitos e tão detalhados, defendo segundo porque mesmo sendo dirigido pelo diretor de Amelie Poulain (Jean-Pierre Jeunet, pois é), esse também é provavelmente o filme mais sangrento da franquia; defendo ainda terceiro porque nunca o tema envolvendo a maternidade e o monstruoso esteve tão em evidência. Além do mais, gosto muito da tripulação - especialmente de Winona Ryder antes de roubar roupas nas lojas -, e acho o roteiro maravilhoso com toda uma lógica de videogame, com direito a labirinto, pausas entre as fases e chefões cada vez mais difíceis de serem superados. Há ainda o momento mais dramalhão da década: andando em um corredor, mais um corredor com aspecto de esgoto, Ripley em sua versão clone observa uma porta com a inscrição 1-7, relacionando naturalmente com o número 8 que ostenta tatuado no braço. Ela, então, entra na sala e atravessa tentativa/falha por tentativa/falha de recriá-la em laboratório, formas meio humanas, meio criatura, o que desemboca num encontro violento quando Ripley chega ao número 7: a heroína da série, agora um ser híbrido, fica diante de sua prévia direta, uma mulher com a face idêntica a dela, mas com membros do alien. Ela está viva, pede num suspiro de desespero que seja morta, Ripley hesita enquanto encara os olhos. Por fim, coloca fogo em tudo com direito aos gritos meio grunhidos, comuns em cenas que autenticam em toda sua cafonice a hora da desforra. Amo.

Dois Pássaros (Islândia, 2008), de Rúnar Rúnarsson

sábado, 7 de julho de 2012

Fão

Era uma típica história que apenas os mais velhos sabiam contar, mas como estavam fadigados seguindo o ritmo de suas cadeiras de balanço, nem sempre conseguiam surpreender os sobrinhos, netos e associados companhia limitada, que ao escutarem o chamado "de que o avô queria contar uma história", imaginavam um bafão em preto e branco sem dramas velozes, provavelmente inundado daqueles nomes de antigamente. Os jovens sabiam também que os mais velhos gostavam de relatar todos os detalhes, especialmente aqueles que não faziam qualquer diferença, de modo que a única chance de escapatória era dormir antes do fim, afinal não eram poucas as vezes que de tão longas, os sobrinhos, netos e associados companhia limitada sequer conseguiam identificar qual parte era realmente "a história" e qual parte era "extra-história". Seja como for, o caso é que o cemitério ficava do outro lado da encosta, porque quando a pequena cidade de Mimoso foi fundada, os mortos costumavam ser amarrados em lençóis e deixados na ponta do abismo para serem levados pela enxurrada em tempos de chuva, tempos que acometiam a região religiosamente a cada cinco anos nos meses de julho. Acontece que numa dessas enxurradas, o caminho da água mudou e ao invés de formar a tradicional cachoeira de cadáveres num abismo próximo, terminou seguindo em direção ao pobre município, não só destruindo casas e até parte da prefeitura, mas matando todas as velhinhas que estavam fazendo fofoca na rua, todos frequentadores - menos um - do boteco do Zé Bode, espalhando pedaços dos restos mortais dos entes queridos pela praça, pelas ruas e até mesmo dentro da igreja. Foram décadas até Mimoso conseguir se recuperar.

Assim, o cemitério se institucionalizou como um cemitério de verdade, a prefeitura contratou um coveiro, tumbas começaram a pipocar por todo campo antes verde e os papa-cebos voltaram a cantar. Roberto era o terceiro coveiro de sua geração, os dois anteriores estavam enterrados um pouco mais para esquerda ou duas quadras para a direita, e toda vez que resolvia fazer a ronda nos corredores sombrios trajando apenas um chapéu, como um bicho desgarrado no meio da noite, terminava resignado na capela entre um copo de conhaque e uma asia perfurante. Seus pés tortos negavam os passos na terra úmida e fofa que cobria centenas de cadáveres, vivia expulsando senhoras que invadiam o espaço para roubar terra para suas hortaliças, mas sua certeza era que cada cova aberta equivalia a um punhado arremessado em seu próprio enterro. Roberto não tinha vinte anos, não viu crescer os pêlos do corpo, só tinha deitado com prostitutas baratas e vivia ouvindo gracinhas dos bêbados que passavam o dia no Bar Ressuscitado do Zé Bode. Tinha poucos amigos, talvez porque os jovens de Mimoso se consideravam muito argutos, cheios de si, falavam de suicídio em tom de piada, bebiam cacarejando sem qualquer ínfima graça, de forma que sempre preferia se manter próximo apenas dos mortos. Talvez fosse um viciado em silêncio, seria um hermitão se não fosse coveiro, e detestava quando as beatas olhavam com compaixão quando não conseguia conter os espasmos de seu corpo afetado. Exceto, talvez, pela morena Lucinda, que lhe oferecia um jantar a cada quinze dias, algo que ele saudava como um banquete e costumava comer sem mal conseguir respirar. Naquela semana, no entanto, Roberto estava desgostoso, comeu a moranga como era de praxe, elogiou como era de praxe, mas enquanto voltava para a casa não resistiu a sua verdadeira vontade: comprou uma coxinha passada e comeu com ketchup de bisnaga.