domingo, 26 de fevereiro de 2012

Rasgos Culturais: Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade

Nem acredito que finalmente consegui publicar a versão em e-book da minha dissertação, não por ter defendido numa fatídica sexta-feira em março de 2010 ou por ter passado os dois últimos anos martelando e remartelando linha a linha ou diagramando e rediagramando cada espacinho, o que sinceramente nem foi o caso, estive trabalhando em outras coisas, mas o tiro certeiro é que sou um desses homens que na impossibilidade de colocar um ponto final nas coisas, vai abrindo fendas e mais fendas incompletas que não podem ser concluídas até que a mais ancestral delas seja encerrada. Nesse sentido, publicar Rasgos Culturais: Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade é como oficializar a cura de minha ferida mais antiga e mais incômoda. As cicatrizes decerto vão me atormentar de quando em quando, não estou lá com aquele sentimento de realização operístico, estou com sono, admito meus sérios problemas com os capítulos finais, mas paciência, precisava apenas de uma dose de alívio para seguir adiante e escavar novas fendas. Então, é isso, aproveitem a leitura.

Ps.: Para baixar em .pdf, basta entrar no link original da publicação.


sábado, 25 de fevereiro de 2012

Encenação e escapismo

Nos primórdios do curso de jornalismo, quando escutei pela primeira vez o significado de mise-en-scène, provavelmente na mesma época em que estive obcecado por Eisenstein, numa tentativa obstinada de entender seu conceito de montagem intelectual, imaginava que ambas as frentes defendiam um cinema cujos mínimos e sutis elementos da cena eram apresentados numa síntese / explosão, fortalecendo planos e sequências, com o objetivo último de adensar a textura do próprio filme. Desde então, contudo, passei a perceber mais claramente produções em que toda vaidade era direcionada exclusivamente para um elemento: seja uma direção de fotografia charmosinha que vira grife no cinema nacional, seja a dispendiosa e inabalável direção de arte, com figurinos de época, maquiagens insalubres ou, os mais detestáveis, as películas motivadas apenas para que os atores narcisisticamente afirmem seu talento. É o caso de A Dama de Ferro, de alguma diretora qualquer que pouco importa, filme em que Meryl Streep interpreta a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, desenhada já bastante idosa, frágil, demente e solitária, não apenas para despertar uma condescendência do público, mas no intuito de facilitar a estratégia também demente da edição. Cada cena mostrada nos flashbacks da personagem confusa, numa construção mnemônica estúpida, é interrompida por um lance de total irrelevância, como se o filme escapasse de si próprio o tempo inteiro para que Meryl pudesse, enfim, brilhar na frente das câmeras. A política aqui é absolutamente reduzida à pantomima.

A pior consequência disso é que A Dama de Ferro esconde todo contexto histórico dentro da encenação de Meryl Streep, não com o interesse íntimo e desmistificador que levou Sokurov a fazer a trilogia Moloch, Taurus e O Sol ou mesmo Stephen Frears a realizar A Rainha, mas tentando instaurar um falso e nojento feminismo que coloca Thatcher como firme num mundo dominado por homens, estimulando uma noção epidérmica da situação, vez ou outra obrigando o espectador a demonstrar simpatia quando ela pega seus DVDs para assistir alguma coisa. Definitivamente, não existe a mulher que serviu de inspiração para as músicas de protesto do The Clash, o seu autoritarismo sempre vem rodeado de "essa é a cena que vai render o oscar de melhor atriz", impossível lembrar que Greenaway fez O cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante encarando os olhos da cobiça dela, não temos ideia que a infâme defendia que o mundo estaria menos estável e mais perigoso se as potências não mantivessem suas armas nucleares, que discursava ressaltando a ganância capitalista como um bem, que obrigava os pobres a trabalharem mais para pagarem as contas do país, que associava em termos públicos o excesso de lucro com a respeitabilidade moral, que basicamente criminalizou a ação de sindicatos, esmagando a consciência libertária dos trabalhadores ou mesmo que, recentemente, pediu a liberdade de Pinochet por ele estar velho, fraco e doente. Não à toa, em 2002, ela foi recomendada por seu médico a não falar mais em público, também pudera, estava já confundindo a Guerra das Malvinas com os conflitos na Bósnia. Para o filme, isso parece o mais importante, daí quanto mais vemos Meryl, menos vemos Thatcher.

A Dama de Ferro nos induz fragilmente a uma identificação inexistente, até porque as alucinações de Thatcher com o marido são constrangedoras, entre uma lembrança e outra, ela está arrumando as coisas dele, recém-falecido, para se distanciar definitivamente de seu fantasma e a partir de cada toque num objeto, somos levados a diferentes momentos de sua vida. Argh! Sim, rola explosão de luz ghost quando ele finalmente vai embora, de modo que a sensação que fica ao final da sessão, além do gosto ruim na boca, é a de que acabamos de assistir a um ensaio em looping de Meryl Streep ganhando o papel, como se o filme sequer tivesse sido feito. Cineastas como Stephen Frears, Derek Jarman e Ken Loach estavam na frente na ala dos críticos de Thatcher, contrariando a sua mão de ferro que tratava a cultura como uma espécie de dissidência que não deveria ser estimulada pelo governo, em especial se tocasse em temas como homossexualidade, lutas camponesas, processos de independência. Sobre o período, Loach comenta: "Fiz uma série de documentários chamada A Question of Leadership que nunca foi exibida sobre a cumplicidade (e não uma conspiração articulada) entre os líderes sindicais e Thatcher - a colusão no sentido de que os líderes sabiam que estavam suprimindo a militância de seus próprios membros. Na década de 1980, o que deveria ter sido a liderança de esquerda foi finalmente revelado como de direita. Também tinha o filme De Que Lado Você Está?, sobre a greve dos mineiros, que era apresentada nas notícias de maneira oposta ao que realmente estava acontecendo, quis registrar a brutalidade da polícia e o subterfúgio do governo".

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Entre a militância e a melancolia


Com o disco Nó na Orelha que liderou várias listas de melhores no cenário nacional em 2011, Criolo, nascido e crescido na periferia paulistana, teve finalmente seu trabalho reconhecido, mesmo com uma carreira iniciada ainda no final década de 1980. Dono de versatilidade vocal e musical, cruzando de maneira elegante ritmos como samba e hip hop, o cantor ganhou destaque pelo tom melancólico de suas letras, mas também por seu engajamento. Passou anos atuando como arte-educador e no campo dos movimentos sociais, sempre lutou por uma distribuição mais justa das oportunidades, bateu o pé contra a homofobia num programa de TV e criticou as ações da polícia na comunidade de Pinheirinho, em São Paulo.

Pela primeira vez no Recife, Criolo se apresentará três vezes durante o Carnaval: participará da abertura (17), no Marco Zero, cantando músicas de Alceu Valença ao lado de outros artistas, subirá no palco do Alto José do Pinho na segunda-feira (20) e encerrará a programação do Rec Beat na terça-feira (21). Conversei pelo telefone com o artista sobre o disco, as expectativas da vinda à cidade e os eventos violentos da história recente do País.

Você conhece Recife? O que está esperando do Carnaval e dos seus shows por aqui?
Não conheço Recife. Uma vez estive em Triunfo, mas na verdade nunca tive oportunidade de viajar e conhecer outras cidades, nunca tive grana, mas agora estou conseguindo por causa da música. No caso do Recife, estou com uma expectativa enorme, todo mundo que cantou por aí, volta e conta a experiência com os olhos brilhando. Como vou passar todos os dias por aí, vou conhecer a comunidade da família do Maurício [percussionista da sua banda] e devo aproveitar para dar uma volta, viver essa festa de rua. Tenho muito respeito pela cidade, pelos mestres que vivem aí e pelo evento do Carnaval, até porque soube que existe no Recife um emblema de aceitar as diferenças como proposta, com palcos montados de forma descentralizada e programação gratuita em várias periferias.

Levando em conta a guinada musical que “Nó na orelha” representou, comenta um pouco sobre o processo de gravação do seu segundo disco.
Eu tinha completado 21 anos de carreira, daí é natural dar um tempo, pensar em mu­dar os rumos e contribuir de outra forma. O “Nó na Orelha” dependeu da presença de ami­gos como Marcelo Cabral e Daniel Ganja­man. A ideia inicial era fazer um registro, pa­ra deixar com minha família, de canções que compus em diferentes épocas, há 10, 15 a­nos ou mesmo recentes, alguns sambas, outros raps. No meio do processo, percebemos que existia alguma coisa ali que merecia ser reunido em outro formato e mostrado a mais gente.

Depois do sucesso do disco, você sentiu pressão para lançar um novo trabalho ou mesmo já vem produzindo canções nesse sentido?
Eu me sinto agradecido pela energia boa que venho recebendo, mas não sinto pressão porque faço música por necessidade, para abrir diálogo, disco é apenas um dos formatos de compartilhar o material. Não faço necessariamente música para disco, isso vem depois, mas essa ansiedade que as pessoas criam é positiva. Só que muitos não sabem é que, apesar de ficarem felizes escutando, sempre que canto revivo a tristeza que me fez compor. E não é suave.

Ainda que você tenha ampliado seu público depois do disco, sua carreira começou há mais de vinte anos. Como foi o começo dessa história?
Aos 11 anos, escutei a palavra rap, vi um colega fazendo verso e achei meio mágico aquele jogo com as frases. Daí fui para casa, fiz igual, depois comecei a compor e essa brincadeira era na verdade uma forma que eu e meus amigos tínhamos de contar e cantar as história do nosso bairro (Grajaú, na Zona Sul de São Paulo). Eu só subi no palco aos 13 anos, no evento de entrega solidária de comida e roupa para a comunidade. Com o passar dos anos, ao envelhecer, entendi que era natural largarmos algumas coisas e ficarmos com outras. De forma que fui largando muita coisa, enquanto a música tomava um espaço cada vez maior na minha vida. Chega uma hora que você admite que não pode deixar algumas paixões de lado.

Você vem ampliando os espaços de apresentação do rap nacional, a exemplo do Rinha de Mc's. Explica um pouco como funciona esse projeto.
O Rinha de MC's nasceu entre 2003 e 2004, a partir desse meu pensamento 'de como podemos contribuir de outras maneiras', basicamente começou com alguns amigos que se juntavam para escutar algumas músicas que apesar de gostarmos tínhamos deixado de escutar há algum tempo. Sempre tive uma simpatia por quem faz "freestyle", eu não tenho esse dom, daí era nossa vontade que os jovens chegassem, criassem seus versos e nesse embate dessem continuidade com seus próprios eventos. Apesar de ser uma batalha de rap, outras atividades também acontecem como grafitti, mas o grande lance é criar um espaço de encontro entre as pessoas, estimulamos a lógica de que precisamos aprender a lutar 'nós por nós mesmos', fomos até convidados para organizar edições em alguns eventos, mas toda nossa negociação gira em torno do fato de que só aceitamos fazer gratuitamente.

No show no Rio de Janeiro na semana passada, você segurou um cartaz fazendo referência ao caso de Pinheirinho. Como você se sente em relação à tragédia?
Não sou cientista político, não sou sociólogo, mas posso falar alguma coisa porque sou cidadão. Fico pensando nas ações que antecedem e que levam a existir esse tipo de coisa. Se há vinte anos, os governos decidissem que toda população tinha direito a educação gratuita, incluindo faculdade, se os governos tivessem apoiado uma distribuição justa da produção de alimentos, será que essas desgraças aconteceriam? É muito fácil falar que o povo é mal educado, mas se formos pensar quem decidiu os rumos da educação, só me resta pensar: quem são os verdadeiros mal educados desse País? Eu me sinto impotente diante de Pinheirinho, a dor que podemos sentir, a dor que eu posso sentir por mais que eu cante, não se compara a dor de quem estava lá e perdeu um ente querido, de quem perdeu o direito de possuir uma casa.

Comentei esse acontecimento porque teve muita repercussão na internet, mas gerou informações desencontradas nos meios de comunicação.
Então, tenho receio das duas situações, primeiro porque algumas pessoas começam a se aproveitar das tragédias para se promover e isso me magoa, pelos shows que estou fazendo em diferentes lugares, sinto que as pessoas querem mudar a realidade que vivem. Tentei até compor alguma coisa, mas a sensação de impotência diante dessa situação e de outras me assola. Vivemos num País que se precisamos de mais energia e algumas tribos estão no caminho, danem-se os índios; se é preciso desenvolver um progresso e o código florestal atrapalha, danem-se os animais. Sempre me pergunto, quando o mundo está assim, “de que adianta fazer uma música”? Não vai trazer os entes queridos de volta, não vai trazer as casas de volta, mas talvez funcione como um lampejo de esperança no ser humano. Algo que a gente não pode perder. Por isso (recitando) devemos cantar pelos mortos, chorar pelos que ficam e orar por dias melhores. O problema é que sempre quem morre é o povo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Cronista social de traços firmes


Portinari é provavelmente o pintor brasileiro que primeiro aprendemos a reconhecer como um pintor brasileiro, não apenas pela consistência de seu imaginário temático comum nas aulinhas de estudos sociais, como pela incrustada dívida - há quem prefira usar a palavra "compaixão" - que parecemos pagar quando nos vemos diante das figuras paupérrimas, esfarrapadas e sofridas de suas telas. Depois do Cristo na cruz, a mãe com os braços para o alto em Enterro na rede, depois de Enterro na Rede, a fome e as moscas que cercam Os Retirantes, depois de Os Retirantes, a robustez dos pés e mãos de O Lavrador de Café, cuja réplica pendurada na sala de jantar da casa de praia da minha família, causava-me um desconfortável combo de espanto e perseverança. Há quem chame a fisionomia das personagens de Portinari de pintura deformista, num direto diálogo que ele estabeleceu, durante sua estadia na Europa, com os traços de Pablo Picasso, figura decisiva no processo de maturidade que o levou a abandonar os resquícios de classisismo, os vícios de um retratista de encomenda para adentrar, ao seu modo, na modernidade. "O homem de Brodowski não esqueceu de Brodowski", escreveu Manuel Bandeira em 1932 ao visitar a sua exposição na galeria do Palace Hotel, primeira em que o pintor retoma lembranças da infância por meio de um primitivismo sentimental, esboçando um programa artístico que ampara indagações político-sociais através da passagem do trem, das festas, dos bailes, enterros, do circo e das procissões. Com o correr dos anos, no entanto, acumulando conhecimento e atirando, alguns dos nossos fascínios, resguardados num passado compartilhado ou individual, vão sendo amargamente esfarelados até emularem uma situação de inexistência. Decerto, se fosse para comentar atualmente sobre a representação das classes mais baixas da sociedade no campo artístico, sem entrar no debate do urubu que voa e do urubu que ataca, as referências cinematográficas seriam as primeiras a surgir. Seja por meio do neo-realismo italiano, que após a Segunda Guerra Mundial revelou uma face poética dos indivíduos que sofreram e lutaram contra o governo fascista no país, seja pelo movimento do Cinema Novo, que através da figura emblemática, para não falar profética, de Glauber Rocha desenvolveu um projeto político que visava colher no subdesenvolvimento uma autêntica problematização estética.

Apesar de estarmos viciados na cultura visual do século XX, aquartelados numa nostalgia moderna, a pobreza como inspiração artística ou diretriz existencial possui uma história mais antiga e para não voltarmos até a jornada de Sidarta sob o regime da ascese, parece-me importante enquanto movimento pré-moderno, lembrar ao menos do realismo literário do século XIX. O livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, por meio de um exímio entrelace narrativo-descritivo que nos mostra o peso das galés sobre os ombros, ergue-se como referência definitiva, tendo sua apropriação tupiniquim aos trancos e barrancos na figura de Aluísio de Azevedo, especialmente em romances realistas / naturalistas como O Cortiço e O Mulato. Seguindo essa mesma tendência, Cândido Portinari, que faleceu há exatos 50 anos, ocupa uma posição de destaque, graças aos seus quadros representando famílias nordestinas arrasadas pela seca, trabalhadores negros em campos de café ou captando todo sofrimento do grito de uma mãe desesperada após perder seu filho para a fome. Não é de se espantar que já com a carreira estabelecida nos anos 1940 e responsável por difudir entre os brasileitos uma alegoria firme de brasilidade, tenha se aproximado do ainda clandestino Partido Comunista Brasileiro, ao lado de Jorge Amado e Caio Prado Jr, se auto-exilando no Uruguai entre 1947-1951 por conta do acirramento da perseguição política pós Estado Novo. Só que a história começa um pouco antes, afinal o artista nasceu em 1903 nas proximidades de Brodowski, interior de São Paulo e era filho de imigrantes italianos que vieram para o País no início do século XX para trabalhar em plantações de café. Portinari é totalmente Terra Nostra. Aos 14 anos de idade, a região recebeu uma trupe de pintores e escultores italianos, cujo ofício era restaurar igrejas e ele terminou sendo recrutado como ajudante (depois de abandonar o colégio antes mesmo de terminar o primário). Essa seria a primeira experiência com arte do futuro pintor, muralista e desenhista, que preferia receber a fazer visitar, costumava usar meias de cores fortes em contrapartida aos suspensórios, colarinhos, gravatas e abotoaduras. No ano seguinte, Portinari partiu para o Rio de Janeiro para estudar na Escola de Belas Artes e antes de alcançar a maioridade, no início dos modernos anos 1920, já tinha sido reconhecido em diversos jornais.

No tempo que esteve ligado à Escola e como pode ser claramente notado na tela Dança na Roça de 1924, o pintor mantinha ainda características diferentes das que viriam torná-lo um cânone, com elementos acadêmicos, retrógrados, acomodados, de tal maneira que sequer participou ou mesmo sentiu o impacto da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, que reuniu uma boa parcela da vanguarda brasileira (mais especificamente, paulistana). Apenas quando seguiu para uma temporada de dois anos em Paris, convivendo com artistas como Van Dongen e Othon Friesz e conhecendo Maria Martinelli, uma uruguaia com quem viveria o resto da vida, é que Portinari muda radicalmente sua forma de pintar e suas intenções estéticas. Alguns estudiosos apontam a distância de suas raízes como a força mobilizadora de seu mergulho nas mazelas e agruras da sociedade, passando a se dedicar firmemente à representação de caráter social após seu retorno ao país. Quase antecipando o papel que o menino de Brodowski viria desempenhar e o espaço que ocuparia na vanguarda moderna, Mário de Andrade critica a arte brasileira da época (até 1930) por carregar “uma ausência de arte social, que reforça um diletantismo estético tipicamente burguês”. O pintor, ao lado dos escritores Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo ou especialmente Graciliano Ramos através de Vidas Secas, quebra essa sistemática formalista, assumindo uma postura firme diante das desigualdades da nação, sem abdicar de particularidades regionais que lhe interessavam e menos ainda das influências cubistas assumidas fora do país. Lembrado por sua série Retirantes, por quadros como O Lavrador de Café e Criança Morta, todos capazes de impor uma culpa compartilhada entre os passantes, Portinari alcançou reconhecimento internacional, sendo responsável por uma produção de quase cinco mil quadros, fazendo com que apresentasse a partir de 1954 uma intoxicação pelo chumbo presente em suas tintas. Terminou falecendo em 6 de fevereiro de 1962 ao não seguir as recomendações médicas de parar de pintar, enveredando num estágio terminal de envenenamento, após concluir dois murais de catorze metros de altura chamados de Guerra e Paz.

Don't Think




Ao lembrar de Don't Think, show do Chemical Brothers gravado no Fuji Rock Festival no ano passado e exibido nos cinemas do país no último final de semana, sinto-me um pouco conservador, escondo o preconceito embaixo do travesseiro, mas o fato é que a simpatia pelo espetáculo em si não barra o desconforto diante da tendência mundial de utilizar as salas escuras como uma arena expandida. Confesso que chego a ficar irritado com o argumento de que é uma forma de socializar eventos que seriam restritos, ampliar o alcance de iniciativas culturais, primeiro porque não passa de uma estratégia de aumento de lucro com economia de recursos, segundo porque estimula a minha cabeça a brincar com a distopia de um mundo em que os artistas apresentam suas canções por meio de uma tela para uma multidão de espectadores e isso basta. Não sei se seria a expressão, parece até um bom trailer, mas falta materialidade, falta corpo, suor não na tela, mas escorrendo do meu próprio rosto. No filme - se é que poderíamos chamar de filme - o que menos importa é uma discussão especializada mínima sobre a utilização das câmeras ou sobre os breves impulsos narrativos esboçados através dos personagens em suas lombras. Aliás, a mensagem do show é bem clara: não pense, deixe apenas fluir.

O caso é que os efeitos especiais controlados por Adam Smith se confundem com a forma em que escutamos as músicas, adensando a provocação vinda das pick-ups de Tom Rowlands e Ed Simons, dupla britânica, que definiu com seus dezoitos anos de carreira os contornos do gênero eletrônico big beat e certamente alterou estados sensórios de uma geração. Em resumo, os dois ficam no centro de um palco, cercados pela maquinaria sonora, cujo fundo é um telão interativo de ponta a ponta com cerca de vinte metros de altura: nem é preciso dizer, mas temos explosões de luzes, formas humanas multicoloridas correndo e caindo, um cavalo mecânico gigante, bolas de tinta atiradas para todos os lados e um palhaço sinistro que invoca estranhas energias. O show em nada fica devendo aos clipes psicodélicos e lisérgicos que marcaram a virada da década de 1990 para os anos 2000. Todos os sucessos estão presentes: Swoon, Hey Boy Hey Girl e Star Guitar, as batidas despertam atmosferas ora suaves, ora sombrias, quase como se recriassem pelo ritmo o extenso caminho até uma bad trip. Resta só a dúvida se dentro de uma sala de cinema, onde geralmente não se costuma beber e a etiqueta pede para que todos permaneçam sentados e calados, um espetáculo tão frenético com pouco mais de uma hora não termina se transformando num programinha enfadonho.