Passei a ter a impressão de que a longevidade de Manoel de Oliveira - impressionante, claro - começou a ocupar o espaço dos comentários sobre os seus filmes, quase como se o diretor português tivesse envelhecido cem anos nos últimos dois. Óbvio que não estou criticando ninguém por repentinamente abrir os olhos e ver que o tempo passou, que os cabelos se tornaram brancos, caíram e que os pés continuam firmes, mas é que há um perigo básico nessa recorrência, pois logo logo num circo de atitudes suspensas se perde a fronteira básica entre a premissa do comentário, a amabilidade do reconhecimento e as piadas infelizes. Digo isso porque na sessão em que assisti O Estranho Caso de Angélica (Portugal / Espanha / França / Brasil, 2010), não na abertura da Mostra de SP, dois dias depois, o mestre de cerimônias para justificar a ausência de Oliveira na ocasião - e ter seu momento stand up comedy - disse, entre outros pobres chistes, que, na semana passada, o cineasta colocou um marcapasso e não recebeu autorização do médico para viajar, "mas vocês sabem como ele é, colocou o marcapasso de manhã e já estava trabalhando à tarde". A platéia veio abaixo numa gargalhada daquelas em que se escuta a garganta arranhando, não entendi direito a graça da lorota e tenho minhas dúvidas se já presenciei uma comoção coletiva tão mórbida / estúpida numa sala de exibição, especialmente por ter lido pouco antes uma entrevista recente numa revista especializada em que ao invés de responder sobre seu último filme ou a vasta filmografia, Manoel mais uma vez era só interpelado sobre sua relação com a morte. Fico imaginando, há pelo menos nos últimos trinta anos, a quantidade de vezes e em quantas línguas ele deve ter respondido sobre esse mesmo assunto. Não que os cinéfilos, críticos e afins desejem secretamente sua morte como Capote teve de desejar a de Perry, mas essa situação me lembra um comentário que nem concordo tanto, sou um sujeito que entende as duas dimensões de maneira muito interligada, mas Paul Valéry escreveu certa vez que quando se escolhe falar apenas do poeta e não mais dos poemas, é porque a lógica do sistema literário se inverteu e se esvaziou por completo. Visto por outro ângulo, isso antecipa e retifica o fato de que as práticas da cultura de celebridade - que fundam cada vez mais criativos níveis de subcelebridades - têm se disseminado por todos os campos, inclusive dos circuitos alternativos, da crítica aos espaços acadêmicos, muitas vezes dominando - e sabotando - o plot dos espaços públicos de discussão.
Foi então que, independentemente de estar ao lado de trezentos infelizes (ok, abuso), as luzes se apagaram, assisti ao filme do longevo (sic) diretor português e após a sessão fiquei remoendo a dúvida de não ter gostado tanto assim, remoendo de tal forma que na mesma noite, após uma profunda decupagem pessoal e de assistir Singularidades de uma Rapariga Loira (Portugal / Espanha / França, 2009), tive certeza do contrário. Manoel de Oliveira inscreveu um segmento suave - suave como o rabo de um gato balançando ao vislumbrar um passarinho na gaiola - numa dolorosa tradição de filmes geralmente densos em que personagens adentram numa jornada de adoração / obsessão diante da morte, impossibilidade ou fuga do ser amado - sintoma que, para Jean Baudrillard, tende a revestir objetos e pessoas de um valor excepcional, rompendo as bases, robustas ou não, de qualquer racionalidade. Em O Estranho Caso de Angélica, o amor de Isaac é inventado numa situação pós-morten - ele, um judeu andarilho, é contratado numa noite chuvosa para tirar uma fotografia da personagem título morta e ela sapecamente sorri através da câmera quando finalmente é enquadrada - e a partir daí se desenvolve uma ausência que fortifica a imagem revelada e uma presença fantasmática que se confunde com a existência. Cria-se uma áurea após qualquer experiência traumática de perda do que se ama ou diante da resignação de não poder alcançar, dotando o indivíduo de um medo da aproximação, de passar perto, de ver, sentir o cheiro, ansioso pelo esquecimento, mas caindo no irreversível lembrar e um lembrar cada vez mais intenso. Pode-se procurar a distância como cura, mas sempre correndo o risco de terminar controlado pelo ressentimento, pela amargura, noção que, como escrevi no post anterior, em Hitchcock, Rodrigues e Antonioni ganha contornos sombrios e devastadores, mas que em Oliveira assume um caráter lúdico saltitante. Sua fábula reafirma a leveza e a simplicidade próprias da experiência madura, o que nada tem a ver com cansaço ou desapego, pelo contrário, tem a ver com tranquilidade, doçura, exatidão, com a capacidade de vestir a paranóia mais doida com uma formosa alegria. Assim, atinge o ápice quando o protagonista voa em um sonho, de mãos atadas a de uma fantasma, ambos em preto e branco, num efeito digital que parte em direção ao cinema feito no final do século XIX, início do XX por George Meliès. Parecem passar sorridentes pelos rostos embasbacados de todos nós.
Aliás, para além de apontar e sobrevoar um século, Angélica costura uma ligação parental com o filme anterior de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loira, inspirado num conto de Eça de Queiroz, em que um rapaz - interpretado pelo mesmo ator da obra mais recente, Ricardo Trêpa (neto de Oliveira) - se apaixona por uma donzela de leque nas mãos com quem troca olhares pela janela. O rapaz encontra a garota, se enamoram, marcam o casamento, ele é expulso de casa pelo tio, precisa viajar para trabalhar, sempre tem pressa para casar, mas logo descobre que havia cometido uma singela falha de percurso: anestesiado pela estonteante beleza, esqueceu de conhecer a rapariga loira para além da imagem que ele próprio, Macário, tinha esculpido idilicamente. Se no passado o rapaz conseguira a mulher que desejara, agora, sozinho, cabisbaixo, viajava de trem para Algarve, arrastando justamente a dor e o peso de tê-la tido ao seu lado e ter sido obrigado a abdicar por conta de um 'imperdoável' hábito descoberto durante a compra das alianças. Ilustrando ambos os filmes através das figuras femininas - e se deixando ilustrar - Manoel de Oliveira ressalta mínimos gestos ingenuamente eróticos e que, talvez por isso, se erguem mais encantadores, graciosos, como um sorriso sapeca na boca de uma morta em Angélica ou um olhar de ressaca numa ninfeta em Rapariga Loira. O universo diegético do diretor português amplia seu charme por meio da confusão temporal na qual se embala, pois não sabemos propriamente 'quando se passa', existem algumas referências recentes em Angélica, a crise econômica, a poluição, mas é como se o encadeamento de elementos "esquecidos" nos planos, os quadros, a mesa, os tapetes, as poltronas, estruturassem um antiquário reunindo e confluindo épocas distantes. Essa dimensão se intensifica graças aos diálogos saídos dos nossos avós, da moral flutuante, do próprio desejo de Isaac - amante das 'coisas antigas' - em retratar homens que aram suas terras com inchadas, não máquinas, procurando resgatar um cotidiano negado até pelos que o ainda compartilham. As fotos reveladas, da Angélica morta e da morte de uma prática, repousam juntas no mesmo varal. Se formos adentrar um pouco pelos bastidores, saberemos que o argumento de Angélica foi escrito ainda no final da década de 40 e o filme parece agregar essa passagem de mais de sessenta anos em seus enquadramentos estáticos, calmos, de quem tem a curiosidade instigante do observar pelo observar.
Em Rapariga Loira, por sua vez, uma das cenas se passa não por acaso num antiquário: plano aberto da porta de entrada, penumbra que torneia a profundidade de campo e detalhes da multiplicidade de objetos postulados sob a astúcia do diálogo de tempos através deles. Seguindo o mesmo caminho, o primeiro encontro com direito a apresentação direta do futuro casal acontece numa sala de estar suntuosa em que cada canto parece saído de um ano diferente da Era Moderna - incluindo os próprios rituais, as condutas, a leitura do poema, os figurinos, a mulher tocando harpa, a cortina da época de Goethe, os sapatos engraxados, o leque oriental da rapariga loira. O anacronismo afetivo e delicado de Oliveira nos concede a chance de nos desapegarmos e formalizarmos o não pertencimento exclusivo a uma única geração, a um bojo de referências restritas, nos revestindo de uma fluidez ao ponto de desenvolvermos (ou cortarmos) fios umbilicais com autores e épocas que não as contíguas ou infantis, libertando alegremente nossos desejos no vasto campo das idiossincrasias da história da humanidade. Manoel de Oliveira se espalha nos últimos cem anos e ultrapassa, não se rendendo a um delírio megalômano, mas artesanalmente costurando uma caixinha de imagens muito delicada. A semelhança entre os dois filmes também se revela em suas pausas através de idênticos planos da cidade, aparecendo sempre em sequência, cuja única mudança é a passagem de dia para noite e vice-versa: a separação dos tons é usada para adentrar em extremos da alucinação em Angélica e da obsessão em Rapariga Loira. Se de manhã, Isaac / Macário tira foto, toma café, pensa, trabalha, flerta, se espreguiça, à noite tem pesadelos, cultiva olheiras, vive num quarto verde minúsculo, preocupa-se, frequenta saraus, jogatinas, voa pela cidade segurando a mão de uma fantasma. Seja como for, depois da redundância sobre a morte ou a velhice diante da textura das imagens, depois dos espectadores forçarem suas gargantas em risadas secas, tuberculosas e irrelevantes, e antes que Alberto Caeiro apague as velas num jogo de cartas com um chinês, termino essa bagatela com uma das primeira frases de Rapariga Loira, dita por um narrador bastante discreto: "o que não contas a tua mulher, o que não contas a um amigo, contas a um estranho". Sempre que viajo, vejo filmes, leio livros - ou bebo uma cerveja com, pasmem, um desconhecido na cidade natal - tenho mais e mais certeza absoluta disso.