"Para essa sessão, que se realizará à meia-noite do dia 3 de outubro, no cinema São Luiz, serão distribuídos convites especiais às figuras de projeção em nossos meios artísticos e às autoridades. Às 22 horas, no salão de honra do Grande Hotel, a Prefeitura oferecerá um coquetel aos artistas e diretores do filme e às autoridades". (JC, 29/set/53, p.4)
A primeira vez que fui ao cinema, nos primeiros anos da década de 90, foi justamente ao São Luiz para assistir alguma comédia romântica com a Whoopi Goldberg, que sequer lembro o nome agora, mas que meu pai, um defensor ferrenho do velho Arraes, tinha me levado não pelo filme, mas para eu conhecer 'o cinema mais importante da cidade'. Ele frequentava mais pelo valor afetivo com o espaço do que propriamente pela programação. Mesmo só tendo faíscas de lembranças dessa época, como uma festa em que me fantasiaram de Rambo ou uma briga que arrumei no São João do colégio por bater num menino no meio da quadrilha, mantenho guardadas vagas imagens daquele dia. Não lembro como fui, como voltei, mas lembro em detalhes dentro do cinema, especialmente os vitrais, pois não parava de olhá-los e continuariam a me fascinar várias e várias vezes durante a adolescência até o fechamento. A última vez que estive no cinema da Rua da Aurora foi num show de Jorge Mautner: lembro que, após o show, me mantive sentado com duas outras pessoas olhando a tela branca por um longo tempo, enquanto os outros se dirigiam para uma rave no primeira andar. Os vitrais estavam apagados. Talvez estivesse me despedindo. Depois disso, vi apenas por fora o cinema numa reforma que não parecia ter fim.
Daí finalmente, depois de um mundo de adiamentos, de toda indecisão possível, do quase risco de não dar em nada, graças ao empenho da Fundarpe, empenho louvável, o cinema São Luiz foi reinaugurado com uma cerimônia de deixar as celebridades de hollywood inundadas de inveja. O filme escolhido para ser exibido na ocasião foi Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, clássico absoluto da galerê oldschool do cinema de retomada. Trata-se na verdade de um ensaio, afinal deixando o glamour de lado e se dando conta que o champagne é sidra, o cinema São Luiz foi reinaugurado mais ou menos, afinal, ontem, foi apenas a reinauguração para convidados, vips, autoridades, jornalistas e ceninha cultural da cidade em geral - isso inclui toda aquela galerinha que você encontra em todo canto, que não faz ideia de quem seja, especialista em fazer amigos e que sempre dá um jeitinho de entrar. A reinauguração pra mundiça do meu Recife vai ser só no dia 12 do próximo ano. Tentarei ir como um bom suburbano que sou: estou curioso pra ver o público de fato. No entanto, preciso dizer que a reinauguração só estará completa quando a sala arrancar de si o fantasma de palanque político, palanque que se repete sistematicamente ao longo das décadas e adquirir um projetor digital. É imprescindível ambas as coisas.
Enfim, aproveitando a pompa do evento, o clima premiere que se abateu sobre a cidade e desejando sinceramente longa vida ao cinema mais bonito que já entrei, lembrei - força da expressão - de um outro evento ocorrido no mesmo local no dia 03 de outubro de 1953, pouco mais de um ano depois de sua abertura em 6 de setembro de 1952. Na ocasião, estreava o filme O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, cuja produção fora toda realizada em nosso estado, com participação de 'profissionais da região', gerando polêmicas e expectativas, pondo em questão até a sexualidade do diretor, briguinhas entre os cronistas dos principais jornais, todo um rebuliço digno de novela em horário nobre. Para se ter uma ideia do vuco-vuco na província, "momentos antes da pré-estréia, o deputado José Santana foi assassinado na calçada do cinema, quando chegava para assistir ao filme. Motivo do crime: brigas políticas no clã dos Santana, natural da cidade de Flores, no interior do estado, que devido às violentas intrigas da família passa a ser conhecida como a 'Coréia do sertão''. Vejamos o que foi publicado em alguns dos periódicos nos dias que se seguiram à sessão, um pouco cruéis, convenhamos, mas que mesmo sendo da época em que Jomard participava de um cineclube católico e que as pessoas caminhavam pelas ruas, não pelos shoppings, acredito que, de alguma forma, têm muito a nos dizer:
"Como acontecimento social, o lançamento de O Canto do Mar confirmou as expectativas. Como filme, deixa muito a desejar" (Carlos Frederico, DN, 05/out/53, p.6)
"Não condenaríamos os atores porque seus fracos desempenhos deveram-se a Cavalcanti que não criou tipos convincentes, mas condenaríamos, com rigidez, o senhor Hermilo Borba Filho, autor dos diálogos, mal feitos, monótonos, sem inspiração (tal qual suas peças teatrais). Da montagem nem é bom se falar: uma lástima. Somente absorveríamos o fotógrafo Cyril Arapoff" (Ângelo de Agostini, JP, 08/out/53,p.4)
"Pernambuco, este estado cheio de tão belas e puras tradições, serviu de cenário para um filme dirigido por Alberto Cavalcanti. O Canto do Mar imergiu nos seus maracatus, percorreu xangôs e apresentou o frevo. fotografou nossas praias. Mostrou igrejas 'grávidas de ouro'. E também a miséria do povo sertanejo, a terra seca e suas paisagens mais tristes. Focalizou tudo isso como numa sucessão de cartões postais que a gente manda para uma pessoa muito distante daqui com uma dedicatória mais ou menos assim: 'aí vão os costumes populares e a terra pernambucana'. Nada mais" (Paulo Fernando Craveiro, DN, 07/out/53, p.3).
"Não há meio termo nas opiniões sobre O Canto do Mar. Para uns, foi a segunda tragédia do São Luiz, sendo a outra a morte do deputado sertanejo; ou que a bala que matou o deputado Santana, pegou casualmente o representante petebista, dirigida que fora, não contra ele, e sim contra Cavalcanti. Para outros, trata-se de uma obra-prima; das tais que o sujeito, depois de fazê-la, vai dormir nos braços da posterioridade (L., DP, 07/0ut/53, p.6)
"Durante uma semana não se falava em outra coisa no Recife. Cartazes. Faixas. Convites. E, finalmente, o filme começa a rodar; o São Luiz super lotado, pessoas em pé, sentadas pelos degraus do balcão, estava vitorioso o cineasta Alberto Cavalcanti. Aparecem as primeiras imagens do alto sertão. A seca. Os esqueletos de animais. Vem o narrador. Não era necessário o narrador, mas o sr. Cavalcanti caprichosamente, achou o contrário; e provocou os primeiros bocejos na platéia" (Duarte Neto, FM, 08/out/53, p.4)
"Bumba-meu-boi, xangô, frevo, maracatu, etc, a película é extremamente valiosa. Estamos, pois, diante de uma obra cinematográfica essencialmente honesta, bem diferente de outras que, ao retratar os nossos costumes, enveredam por caminhos falsos e pretensiosos. A direção de Cavalcanti, crua e vigorosa, soube tirar o máximo de todos os atores" (Jomard Muniz de Britto, DP, 11/out/53)
"Em verdade, o zabumbamento que precedeu a exibição de O Canto do Mar foi excessivo para ele. Também não merecia a depreciação dada pela Prefeitura, com aquela enxurrada de letras minúsculas num convite bem impresso" (Mário Melo, JC, 11/out/53)
"O Recife tem destas coisas surpreendentes. A noite de sábado foi marcada por duas tragédias terríveis. Uma, lá fora, na calçada do cinema, onde tombou um deputado com a cabeça esmigalhada por uma bala misteriosa. A outra, foi a exibição do filme O Canto do Mar. Ambas, quase na mesma hora e com uma semelhança de motivos telúricos que nos dá o que pensar. O filme começa no sertão e se espapaça para praia. A outra tragédia, dizem os jornais, também teve origem no sertão e terminou em pleno coração do Recife" (Aderbal Jurema, JC, 11/out/53).
"Todos nós que nos dirigimos aquela noite de sábado ao Cinema São Luiz (desde os beneficiados pela política do DDC até os 'sem convite' que de uma maneira ou de outra conseguiram penetrar no cinema; e este foi o caso aqui do cronista), estávamos crentes de que afinal chegara a hora de enchermos a boca para falarmos sem constragimentos e sem medos sobre o cinema brasileiro". (Luiz Felipe, FM, 15/out/53)
"Dos 450 convites impressos, dez ficaram com Cavalcanti e o resto, com exceção do de mais uns poucos que foram dirigidos a quem realmente tinha direito, foi transformado em prenda eleitoral. No mínimo dois vereadores serão eleitos por intermédio daqueles convites e mais dois filmes desses e a campanha para a sucessão governamental estará assegurada" (Alexandrino Rocha, FM/08/out/53).
Para mais informações ver: ARAÚJO, Luciana. A Crônica de Cinema do Recife dos Anos 50. Recife: FUNDARPE; 1997.