terça-feira, 29 de dezembro de 2009

São Luiz

"Para essa sessão, que se realizará à meia-noite do dia 3 de outubro, no cinema São Luiz, serão distribuídos convites especiais às figuras de projeção em nossos meios artísticos e às autoridades. Às 22 horas, no salão de honra do Grande Hotel, a Prefeitura oferecerá um coquetel aos artistas e diretores do filme e às autoridades". (JC, 29/set/53, p.4)


A primeira vez que fui ao cinema, nos primeiros anos da década de 90, foi justamente ao São Luiz para assistir alguma comédia romântica com a Whoopi Goldberg, que sequer lembro o nome agora, mas que meu pai, um defensor ferrenho do velho Arraes, tinha me levado não pelo filme, mas para eu conhecer 'o cinema mais importante da cidade'. Ele frequentava mais pelo valor afetivo com o espaço do que propriamente pela programação. Mesmo só tendo faíscas de lembranças dessa época, como uma festa em que me fantasiaram de Rambo ou uma briga que arrumei no São João do colégio por bater num menino no meio da quadrilha, mantenho guardadas vagas imagens daquele dia. Não lembro como fui, como voltei, mas lembro em detalhes dentro do cinema, especialmente os vitrais, pois não parava de olhá-los e continuariam a me fascinar várias e várias vezes durante a adolescência até o fechamento. A última vez que estive no cinema da Rua da Aurora foi num show de Jorge Mautner: lembro que, após o show, me mantive sentado com duas outras pessoas olhando a tela branca por um longo tempo, enquanto os outros se dirigiam para uma rave no primeira andar. Os vitrais estavam apagados. Talvez estivesse me despedindo. Depois disso, vi apenas por fora o cinema numa reforma que não parecia ter fim.

Daí finalmente, depois de um mundo de adiamentos, de toda indecisão possível, do quase risco de não dar em nada, graças ao empenho da Fundarpe, empenho louvável, o cinema São Luiz foi reinaugurado com uma cerimônia de deixar as celebridades de hollywood inundadas de inveja. O filme escolhido para ser exibido na ocasião foi Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, clássico absoluto da galerê oldschool do cinema de retomada. Trata-se na verdade de um ensaio, afinal deixando o glamour de lado e se dando conta que o champagne é sidra, o cinema São Luiz foi reinaugurado mais ou menos, afinal, ontem, foi apenas a reinauguração para convidados, vips, autoridades, jornalistas e ceninha cultural da cidade em geral - isso inclui toda aquela galerinha que você encontra em todo canto, que não faz ideia de quem seja, especialista em fazer amigos e que sempre dá um jeitinho de entrar. A reinauguração pra mundiça do meu Recife vai ser só no dia 12 do próximo ano. Tentarei ir como um bom suburbano que sou: estou curioso pra ver o público de fato. No entanto, preciso dizer que a reinauguração só estará completa quando a sala arrancar de si o fantasma de palanque político, palanque que se repete sistematicamente ao longo das décadas e adquirir um projetor digital. É imprescindível ambas as coisas.

Enfim, aproveitando a pompa do evento, o clima premiere que se abateu sobre a cidade e desejando sinceramente longa vida ao cinema mais bonito que já entrei, lembrei - força da expressão - de um outro evento ocorrido no mesmo local no dia 03 de outubro de 1953, pouco mais de um ano depois de sua abertura em 6 de setembro de 1952. Na ocasião, estreava o filme O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, cuja produção fora toda realizada em nosso estado, com participação de 'profissionais da região', gerando polêmicas e expectativas, pondo em questão até a sexualidade do diretor, briguinhas entre os cronistas dos principais jornais, todo um rebuliço digno de novela em horário nobre. Para se ter uma ideia do vuco-vuco na província, "momentos antes da pré-estréia, o deputado José Santana foi assassinado na calçada do cinema, quando chegava para assistir ao filme. Motivo do crime: brigas políticas no clã dos Santana, natural da cidade de Flores, no interior do estado, que devido às violentas intrigas da família passa a ser conhecida como a 'Coréia do sertão''. Vejamos o que foi publicado em alguns dos periódicos nos dias que se seguiram à sessão, um pouco cruéis, convenhamos, mas que mesmo sendo da época em que Jomard participava de um cineclube católico e que as pessoas caminhavam pelas ruas, não pelos shoppings, acredito que, de alguma forma, têm muito a nos dizer:

"Como acontecimento social, o lançamento de O Canto do Mar confirmou as expectativas. Como filme, deixa muito a desejar" (Carlos Frederico, DN, 05/out/53, p.6)

"Não condenaríamos os atores porque seus fracos desempenhos deveram-se a Cavalcanti que não criou tipos convincentes, mas condenaríamos, com rigidez, o senhor Hermilo Borba Filho, autor dos diálogos, mal feitos, monótonos, sem inspiração (tal qual suas peças teatrais). Da montagem nem é bom se falar: uma lástima. Somente absorveríamos o fotógrafo Cyril Arapoff" (Ângelo de Agostini, JP, 08/out/53,p.4)

"Pernambuco, este estado cheio de tão belas e puras tradições, serviu de cenário para um filme dirigido por Alberto Cavalcanti. O Canto do Mar imergiu nos seus maracatus, percorreu xangôs e apresentou o frevo. fotografou nossas praias. Mostrou igrejas 'grávidas de ouro'. E também a miséria do povo sertanejo, a terra seca e suas paisagens mais tristes. Focalizou tudo isso como numa sucessão de cartões postais que a gente manda para uma pessoa muito distante daqui com uma dedicatória mais ou menos assim: 'aí vão os costumes populares e a terra pernambucana'. Nada mais" (Paulo Fernando Craveiro, DN, 07/out/53, p.3).

"Não há meio termo nas opiniões sobre O Canto do Mar. Para uns, foi a segunda tragédia do São Luiz, sendo a outra a morte do deputado sertanejo; ou que a bala que matou o deputado Santana, pegou casualmente o representante petebista, dirigida que fora, não contra ele, e sim contra Cavalcanti. Para outros, trata-se de uma obra-prima; das tais que o sujeito, depois de fazê-la, vai dormir nos braços da posterioridade (L., DP, 07/0ut/53, p.6)

"Durante uma semana não se falava em outra coisa no Recife. Cartazes. Faixas. Convites. E, finalmente, o filme começa a rodar; o São Luiz super lotado, pessoas em pé, sentadas pelos degraus do balcão, estava vitorioso o cineasta Alberto Cavalcanti. Aparecem as primeiras imagens do alto sertão. A seca. Os esqueletos de animais. Vem o narrador. Não era necessário o narrador, mas o sr. Cavalcanti caprichosamente, achou o contrário; e provocou os primeiros bocejos na platéia" (Duarte Neto, FM, 08/out/53, p.4)

"Bumba-meu-boi, xangô, frevo, maracatu, etc, a película é extremamente valiosa. Estamos, pois, diante de uma obra cinematográfica essencialmente honesta, bem diferente de outras que, ao retratar os nossos costumes, enveredam por caminhos falsos e pretensiosos. A direção de Cavalcanti, crua e vigorosa, soube tirar o máximo de todos os atores" (Jomard Muniz de Britto, DP, 11/out/53)

"Em verdade, o zabumbamento que precedeu a exibição de O Canto do Mar foi excessivo para ele. Também não merecia a depreciação dada pela Prefeitura, com aquela enxurrada de letras minúsculas num convite bem impresso" (Mário Melo, JC, 11/out/53)

"O Recife tem destas coisas surpreendentes. A noite de sábado foi marcada por duas tragédias terríveis. Uma, lá fora, na calçada do cinema, onde tombou um deputado com a cabeça esmigalhada por uma bala misteriosa. A outra, foi a exibição do filme O Canto do Mar. Ambas, quase na mesma hora e com uma semelhança de motivos telúricos que nos dá o que pensar. O filme começa no sertão e se espapaça para praia. A outra tragédia, dizem os jornais, também teve origem no sertão e terminou em pleno coração do Recife" (Aderbal Jurema, JC, 11/out/53).

"Todos nós que nos dirigimos aquela noite de sábado ao Cinema São Luiz (desde os beneficiados pela política do DDC até os 'sem convite' que de uma maneira ou de outra conseguiram penetrar no cinema; e este foi o caso aqui do cronista), estávamos crentes de que afinal chegara a hora de enchermos a boca para falarmos sem constragimentos e sem medos sobre o cinema brasileiro". (Luiz Felipe, FM, 15/out/53)

"Dos 450 convites impressos, dez ficaram com Cavalcanti e o resto, com exceção do de mais uns poucos que foram dirigidos a quem realmente tinha direito, foi transformado em prenda eleitoral. No mínimo dois vereadores serão eleitos por intermédio daqueles convites e mais dois filmes desses e a campanha para a sucessão governamental estará assegurada" (Alexandrino Rocha, FM/08/out/53).

Para mais informações ver: ARAÚJO, Luciana. A Crônica de Cinema do Recife dos Anos 50. Recife: FUNDARPE; 1997.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Dedicatória

Ao meu pai (in memoriam), por ter patrocinado minha vasta coleção de dinossauros de plástico durante a infância e por, atendendo aos meus melindrosos pedidos, ter me levado à estréia de Jurassic Park, aos meus oito anos, conseguindo ingressos mesmo quando o bilheteiro tinha nos avisado que a sala estava lotada.

A minha mãe, por, há muito, muito tempo, quando eu não passava de um garoto, ter me contado inúmeras histórias incríveis de amor e guerra, sempre distorcendo os detalhes ao prazer de sua imaginação, mas cujos motes partiam de filmes italianos, franceses e americanos que tanto gostava. Um dia, resolvi vê-los.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Ausência

E só para dar uma satisfação de minha ausência, não abandonei o blog, não ainda, acontece que estou escrevendo finalmente a minha dissertação de mestrado, que atualmente se chama Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade, talvez faça um post em janeiro com trechos, mas a questão é que preciso terminá-la, a dissertação, até o início de fevereiro pra dar tempo de mandar pra revisão. Ou seja, desespero pra que te quero. Estou sonhando quase todos os dias com perseguição e um amigo me disse que isso significa que meu inconsciente está me dizendo que não vai dar tempo. Daí virou uma questão de honra, preciso conseguir terminar e mostrar quem é que manda nessa cabeça aqui. De qualquer forma, só sei que já fugi de helicópteros em arranha-céus, usei até lança míssil de uma varanda; já fugi de badboys cariocas em cidades condomínios, de insetos em hospitais contaminados e de mulheres a beira de um ataque de nervos dentro de um shopping em liquidação. Ok, até que estou me divertindo.

Many Happy Returns (Reino Unido, 1997), de Marjut Rimminen



Nada como um bom trauma de infância.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Várzea-Derby; Derby-Várzea


Por uns bons anos, peguei ônibus todo santo dia para ir ao colégio, de forma que cerca de um décimo do meu tempo diário se passava dentro do cdu/várzea centro-subúrbio ou do cdu/várzea subúrbio-centro. Eventualmente pegava um cdu/boa viagem/caxangá na volta. Nunca na ida. Seja como for, ou melhor, sendo otimista, cada viagem devia durar cerca de quarenta minutos, o que dava uma hora e meia contando com a volta. Daí pra fazer o drama, em uma semana permanecia no mínimo 8 horas dentro de um ônibus; em um mês, 32 horas, em um ano, hmmm, digamos que 320 horas para compensar o uso diletante nos meses de dezembro e janeiro. Pois é, são mais de 13 dias inteiros. Entretanto, antes que alguém comece a reclamar da vida, dizendo que mora em São Paulo e passa 78959050950495 horas dentro de um ônibus ou do carro ou sei lá, que enfrenta quilômetros de trânsito, que mora em Piedade e estuda em Olinda, que a rotina é um inferno, comecei esse post só para dizer que passei a maior parte desse meu tempo observando as pessoas: olhava as roupas, os tiques, os gestos, a impaciência, quem levava sacola, quem fingia sono para não carregá-las, a forma de falar, sobre o que falavam, a altura da voz, o corte de cabelo, a cor dos olhos, o sorriso, a grossura da batata da perna, as relações quando estavam em grupo e claro, o corpo por debaixo das roupas. Havia todo um clima de quem tinha acabado de deixar a supervisão familiar e estava aprendendo a lidar com o mundo, num misto de impacto, encantamento e incerteza, mas usando de truques infantis para conseguir se safar.

Eventualmente reconhecia uma ou outra pessoa, que sempre pegava no mesmo horário que eu, muitas das quais nunca troquei uma palavra, só compartilhávamos o mesmo espaço, a mesma efeméride, o mesmo tédio. Conseguia até captar certas recorrências de comportamento nesses casos. Parece besteira, mas nunca consegui lidar direito com a sensação de estar perdendo tempo: mesmo parado, em pé, sentindo cheiro de suor seco misturado ao bafo da cidade, tinha que estar com a cabeça a mil. Nesse sentido, foi graças aos ônibus médio vazios, ou seja, os que davam pra sentar, que pude estudar para o vestibular: durante o último ano do ensino médio, virou um ritual, estudava da hora que entrava até a hora que descia, até porque em casa, lia livros, escrevia umas toscas poesias de amor ou fazia pesquisas - não existia o google, mas existia a barsa - sobre assuntos que me interessavam, mas que não podiam ser tratados como conteúdo de uma prova. Eram puro devaneio pessoal: uma clara obsessão pelas guerras da humanidade aqui, uma nóia em assistir os clássicos do cinema até a metade do século XX ali, um lamento por não ter como me tornar paleontólogo. Meus cadernos da época são verdadeiros tratados sobre a digressão juvenil: frases e mais frases tradutoras de um instante em meio a equações que já não me dizem nada. De qualquer forma, na maior parte do tempo que passava dentro dos ônibus, obviamente não estava estudando coisa alguma, daí me entregava ao deleite da observação: sentava na janela, olhava os transeuntes, escutava as conversas dos outros pela metade, piscava o olho para quem passava em pé nos coletivos que seguiam o caminho contrário. Entre um olhar e outro, entre uma frase pela metade e outra criava micronarrativas, procurando saber para onde as pessoas estavam indo ou de que fim de relacionamento tinha acabado de sair. Todo dia chegava em casa com uma criação mais absurda que a outra, mas não se sintam traídos, não foi assim que comecei a escrever os primeiros contos.