domingo, 7 de novembro de 2004

Bocarra

Pela quarta vez na semana e décima sexta num mês de vinte e oito dias, Bento chegou atrasado no emprego. O ônibus tinha demorado, o ônibus estava cheio, o ônibus não parava de encher. Os créditos do cartão eletrônico não vingaram, o despertador tinha falhado, precisou contar as moedas de todos os seus bolsos. Tinha o bastante, passou a catraca, não sentou, ninguém segurou sua mochila, sentiu dor nas pernas, atendeu o celular duas vezes, segurou os gases da sopa de feijão dormida do café da manhã, lembrou da 'batida salve-todos' no esconde-esconde, preferia quando gritavam 'golou o ovo', chegou atrasado no emprego pela quarta vez na semana e décima sexta num mês de vinte e oito dias. Apressado, soltou um "bom dia" na entrada sem olhar para quem estava falando e enquanto passava o crachá no ponto eletrônico, notou que os porteiros e motoristas da firma estavam reunidos lendo e discutindo passagens da Bíblia. Abriu a bocarra, afinal ele, que tinha todos os motivos para abrir a bocarra, não desperdiçava seu tempo com qualquer asneira. Subiu as escadas resmugando: "pois no meio tempo, porteiro e motorista não ficavam de tititi com a Bíblia, discutiam sobre cachaça e mulher e seguravam o saco com força". Naturalmente, houve mal estar.