segunda-feira, 15 de dezembro de 2003
Bu!
Às vezes sinto tesão com gritos de horror.
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Devaneios
quarta-feira, 10 de dezembro de 2003
Rémy
A cada dia me convenço mais de que o pior não foi ter passado por uma miríade de 'ismos' e ter desembocado a maturidade no conforto burguês, não foi, como comentam as apaixonantes personagens de Invasões Bárbaras (Canadá, 2003), de Denys Arcand, ter sido um jovem nômade ora separatista, independecialista, ora imperialista, imperialista-associado; antes, existencialista, depois, anti-colonialista, depois ainda, marxista, marxistas-leninista, trotskista, maoista, estruturalista, situacionista, feminista, desconstrucionista. O pior, de fato, é não ter passado por nenhum desses estágios, manter-se na suspensão perpétua de quem nasceu depois das grandes ideologias; não poder contar, na condição de avô sentado numa cadeira de balanço perto da fogueira, histórias de 'quando mudei o mundo' durante a juventude. Sinto um temor imenso, me controlei bastante para não chorar no cinema, chorar pelo tempo errado que parece contaminar cada espaço vazio: aliás, ultimamente, na falta de uma crença, ou de várias delas, tenho acreditado mais e mais que minha geração inteira vai morrer de câncer.
domingo, 7 de dezembro de 2003
Vazio
É um vazio.
Sou o afeto no olhos refletidos pelo vidro da janela, as palavras de desprezo soltas no vento e o eco dos intermináveis passos num corredor sem fim. Sou a inofensiva bolinha de papel batendo no seu rosto, o cuspe escorrendo de seu queixo e o Judas enforcado pelo fio do telefone.
Sou o afeto no olhos refletidos pelo vidro da janela, as palavras de desprezo soltas no vento e o eco dos intermináveis passos num corredor sem fim. Sou a inofensiva bolinha de papel batendo no seu rosto, o cuspe escorrendo de seu queixo e o Judas enforcado pelo fio do telefone.
É um vazio. Um vazio tão imenso que vai além dos contornos de meus dedos. Um vazio que pinga, que apaga as luzes dos postes e que esquece de trazer o amor para o seu seio. É um vazio que dói, que desanda nos passos da dança, que nos chama de tolo e corre em passos de lebre. É um elefante no meio da sala, uma pressão que me estala. É o medo de viver.
É um vazio. Um vazio que fere a minha carne, que cospe no meu rosto e beija a minha boca no banheiro. É vazio que se faz culpa pelos livros, que faz da biblioteca desperdício, é a vontade de se vingar. É um vazio que passa invisível, que torce o nosso corpo e desliza sem sentido. É um elefante em cima da mesa, um choro de tristeza. É o ímpeto de fim desde o começar.
É um vazio. Um vazio na falta de ar, na ausência de palavras a se dizer, na lembrança das eternas quedas e no anseio por dormir no chão. É um vazio ao lado da cama, do telefone que nunca descansa e do abandono que não deveria existir. É um vazio nas ameixas pisadas, nas amizades deixadas. É um elefante na minha cabeça, um momento de total estranheza. É o futuro perdido em minhas mãos.
Sou a loucura da existência, o delírio do vazio dos anjos e um tiro em câmera lenta. Sou o esquecimento da lembrança, a última angústia de uma ânsia, o som de Beethoven mal tocado em meu piano.
É um vazio.
(Sensações pós-sessão de Elephant (EUA, 2003), de Gus Van Sant)
(Sensações pós-sessão de Elephant (EUA, 2003), de Gus Van Sant)
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Cinema
sexta-feira, 5 de dezembro de 2003
Respeito
Impossível não desenvolver carinho pela pessoa com a qual você descobriu a singular alternância entre os dias em que encarnamos o ilusionista e os outros em que nos rendemos à ilusão.
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Devaneios
quinta-feira, 4 de dezembro de 2003
Platonismo
Ele não se conforma com a condição de conhecê-la há poucos meses e sentir o seu desprezo como se a amasse há séculos.
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Devaneios
quinta-feira, 27 de novembro de 2003
Belas e cinderelas
Ainda que tenha passado a maior parte da infância diante das princesas da Disney, Eliane nunca se mostrou muito esperançosa quando o assunto era amor. Primeiro foi se apaixonando, sempre de maneira silenciosa, pelos coleguinhas mais bonitos da sala, os galeguinhos de olhos azuis e traços quase femininos, os mesmos que as meninas mais bonitas gostavam; depois, para fugir da concorrência e despistar seu próprio estilo de patinha feia, passou a olhar os supostamente sem gracinha, escondidos atrás dos óculos fundos e do jeito desengonçado, até que, em dado momento da adolescência, aprendeu a não esperar mais príncipe encantado algum, desgostou dos cavalos brancos e implodiu todos os castelos. Desde então, quando muito, Eliane torce para que nos dias em que estiver sentada na janela, com o lugar vago no corredor e o ônibus de portas abertas naquelas paradas em que sobem dezenas de passageiros, o homem mais mais mais mais bonito, ao menos, sente ao seu lado. Se acontece, os chiados começam a virar rugidos.
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Crônicas
quinta-feira, 20 de novembro de 2003
Noite
Enquanto a fumaça dos carros se misturava a fumaça dos cigarros, enquanto os cachorros latiam e protegiam a sua ninfa, enquanto os vendedores trocavam de rosto, alguns tantos olhos e um único olhar diferente dos outros. Não se esqueçam, amigos, a vodka acabou. Peguemos nossas cervejas e brindemos agora. Mantinham uma pose de bandidos burgueses que nunca os levou a lugar algum, sequer entraram em cartaz no cinema mais próximo. O tempo voa, a rua está deserta e novamente estamos ébrios. Não veriam as luzes nos velhos prédios em reforma se acenderem. Depois da canção de ninar, não esquecerão, nenhum deles, de beijar os filhos e de, antes de partirem, depositarem as memórias em parte de seus sonhos.
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Devaneios
quinta-feira, 13 de novembro de 2003
Vertigem
Estamos esquecidos,
Revividos de sombra,
Perdendo o controle.
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Devaneios
terça-feira, 11 de novembro de 2003
sexta-feira, 7 de novembro de 2003
Casal
Às vezes vejo dois corpos se unindo e desejo secretamente me dividir em dois.
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Devaneios
domingo, 2 de novembro de 2003
Substituição
Dois anos foram o bastante para deixarmos nossa infância de lado, deixarmos o futebol de campo e de botão, esquecermos as longas férias na fazenda e perdermos o interesse pelos bonecos de cavaleiros do zodíaco. Desde então, ando dando pouca bola ao que ficou para trás me escondendo cinicamente na presença dos amigos que há pouco surgiram e até mesmo na penumbra dos que estão por vir. Carrego certa culpa por me sentir tão capaz e, ainda assim, incapaz de racionalizar os relacionamentos como operações matemáticas: o resultado da substituição de pessoas por pessoas sempre nos lança numa equação arriscada.
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Devaneios
quarta-feira, 29 de outubro de 2003
Vestibular
Henrique era só mais um desses meninos que escolheram biologia por acaso, que não sabiam o que fazer, escolhiam pela matéria no colégio, pelo tesão na professora, pela secreta vontade de produzirem seus próprios lolós, nem imaginavam que estavam costurando ali, a decisão fundamental que os definiria para o resto da vida. De qualquer forma, na hora de marcar um X, escolheu com convicção, passou a se interessar verdadeiramente, embarcou na botânica e não pretendia mudar de curso, não pretendia pelo simples temor em deixar de lado e não encampar nenhum outro. Bem que faria filosofia ou psicologia; terminaria em jornalismo; jamais, administração. O caso de Arlindo foi diferente. Fez jornalismo convencido de que era o que mais queria na vida, desistira da pressão da família para fazer Direito, tinha ficado numa tremenda dúvida por Letras por razões óbvias, mas ao ver a grade curricular, decidiu pelo primeiro porque tinha ao menos algumas disciplinas práticas. Daí fez também Relações Internacionais, pra ter uma certeza de curso, caso não passasse na UFPE, e porque sempre gostara de ler sobre guerras, desde àquelas bem antigas, guerra do Peloponeso, Guerras púnicas, de modo que em algum momento bateu o destempero de ser correspondente em conflitos atuais. Hoje não faz mais sentido algum. Antes de se formarem, Henrique e Arlindo pensaram: "decidir os próximos 50 anos aos 17 é foda".
segunda-feira, 20 de outubro de 2003
Recuperação
Depois do fim, acordou na segunda atropelado por um trator. Abriu os olhos cinco vezes antes de conseguir se mexer. Na terça-feira, despertou atropelado por uma bicicleta. Mexia com facilidade apenas os dedinhos dos pés. Na quarta, Alfredo pegou a bicicleta para andar.
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Cotidiano
segunda-feira, 13 de outubro de 2003
Argentina
Para os que nunca aprenderam a assobiar, todo assobio é um chamado que a primeira vista parece não poder ser respondido, tal qual os gritos de saudade que costumava dar sempre que voltava ao nosso quarto. Simulava um sussurro meu em ouvidos seus e devaneios mil. Lembrava gesto a gesto os malandros lábios disfarçados, aquele meu sentir de garoto inconformado, o velho desvencilho de olhos contra olhos que tanto nos marcou. Não lembro onde deixei a foto, mas continuo me encarando todos os dias no espelho. Vejo o suave balançar de seu vestido meio channel, as pernas bem encaixadas, a reclamação sobre o sereno; vejo o garçom tombar de bêbado com os nossos copos, nosso riso desengonçado e lembro da brisa que embalava o seu desejo eterno de inventar. O tango argentino numa boca rugosa com dentes brancos, os amigos de longe sambando como bons brasileiros que nunca sambaram e eu perdido no teu, com dois vinhos diferentes, um em cada mão, e com as palavras de Chico bem baixinhas. Você me culpa pelas flores que nunca mandei, devolvendo meu cartão de natal como um carro bomba pronto para matar quarenta e tantas pessoas numa boate chilena. Sempre gostei da forma como deixaste a canção seguir sem dor, mas nunca conseguimos lidar com o peso que empunhaste em cada um dos versos. Passaram os dias e ainda sinto vontade de sair andando devagar em busca do teu sorriso. Sou um garoto sem pressa num passo rápido, esqueço o chapéu e danço uma fina valsa sussurrando ao teu ouvido as palavras de uma música em português com um sotaque bem carregado. Pois é, meu bem, nunca gostei dessa sua mania de insistir no tango.
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Correspondências,
Devaneios
segunda-feira, 29 de setembro de 2003
Oremos
Seu sexo havia sido renegado desde que desistira viver fora dos muros do seminário católico, desde que decorara cada um dos salmos, provérbios, que acumulara a oratória hipócrita dos sermões, de tomar vinho e comer o sagrado pão abençoado por Deus. Sua sexualidade, entretanto, se mantinha mais ativa do que nunca: sonhava com bacanais envolvendo freiras, anjos e diabos que escorriam pelas bordas dos desenhos sacros; se masturbava para santas e relicários; assistia filmes religiosos com o tesão de um espectador pornô, honrava abstinência se inundando de culpa. Todos da sua família alertaram-no da precocidade pela sacristia, sequer tinha chegado aos trinta, as experiências reais, pêlo a pêlo, podiam ser contadas nos dedos. Enlouquecia em sua perversão dia a dia, tanto que depois de tomar todo vinho da eucaristia, se encontrava nuns dos motéis mais chinfrins da cidade - de outra cidade que não a sua. Estava disfarçado, calça jeans, camisa de botão, um colar de prata. Tinha vergonha das palavras idiotas que lia e apoiava, vergonha de ficar excitado durante a missa imaginando toda as mulheres da platéia sem calcinha - inclusive as mais velhas beatas. Despiu-se em poucos movimentos e abriu uma das malas jogadas em cima da cama, vestiu a batina, deitou-se sobre ela e se encarou profundamente pelo espelho do teto. Queria viver o outro lado que sempre esteve lá. Seu sexo havia sido renegado desde que desistira de viver fora dos muros do seminário católico que ingressara ainda jovem, sua sexualidade, no entanto, lutava permanentemente para superar tamanha abdicação. Bateram na porta uma, duas, três vezes. O padre-ex-padre fingiu não escutar.
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Contos
sábado, 20 de setembro de 2003
Geração
Os hippies estão mortos. Os punks não passam de piada. A contestação parece apenas habitar as lembranças dos que viveram intensamente numa nostálgica década de sessenta ou setenta. Agora tanto faz. Ninguém está mais interessado em mudar o mundo, querem apenas trocar as roupas, retocar a maquiagem, mudar o próprio visual. Somos os filhos dos que viveram a ditadura; dos que foram torturados ou dos que fugiram para o exílio. E da forma como nos contam, parecem cheios de orgulho apesar do tom de lamento. Não vivemos nenhuma grande guerra, nenhuma grande depressão, nenhuma grande coisa. Parecemos contentes com o que há de pequeno em nossas vidas.
Fazemos parte da geração do depois, do não acontece. Somos o barco perdido num mar sem ondas, a folha seca se deteriorando sem nunca ser levada pelo vento. Vivemos reféns da impossibilidade, como se estivéssemos presos entre os fatos da história e o nosso espírito do tempo fosse justamente o de se entregar ao hiato. Fazemos parte de uma geração que sente ter nascido tarde demais e que se embriaga da sensação de que morreremos antes da hora. Talvez, para sobreviver, devamos pensar que a nossa revolução, a revolução do depois, seja a pequena revolução em nós mesmos ou nos contentar, com sorrisos colgate, que não há mais revolução alguma a ser feita.
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Devaneios
segunda-feira, 8 de setembro de 2003
electroburros
Na parada de ônibus,
a vida passa e ele não passa.
Depois da terceira ponte,
ninguém lembra do último banho de rio.
a vida passa e ele não passa.
Depois da terceira ponte,
ninguém lembra do último banho de rio.
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Devaneios
sábado, 6 de setembro de 2003
FIRUFPE
Das últimas 48 horas, só dormi 3 e nos últimos meses tenho reclamado mais que o normal sobre cansaço, mas é que é difícil manter um resto de humor quando se passa quase oito horas dentro de uma sala de aula todos os dias escutando mais baboseiras que coisas legais. Imagino que em termos de acúmulo de atribulações, a tendência seja só piorar com a idade, estamos sempre nos enchendo com mais responsabilidades do que somos capazes, fazendo questão de acelerar a boa hora em que o corpo se cansa de vez. Costumamos chamar isso de vida com realização profissional. Bullshit. Pois é, só queria dizer que não sei como estou conseguindo levar as duas faculdades, entrei oficialmente na fase de precisar admitir isso para mim mesmo, só que se desistir agora, a indecisão ainda neblina minha cabeça, me conheço, vou me sentir culpado e ficar pensando em todas as pessoas que conseguem terminar dois cursos universitários simultaneamente sem problemas. Queria só saber onde esse perfeccionismo vai me levar. De qualquer forma, tem um lado positivo nessa rotina transbordante, afinal fico até chocado com a determinação que desenvolvi, se é que esse impulso suicida pode ser chamado de determinação.
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Cotidiano
sexta-feira, 5 de setembro de 2003
Duelo
Aos olhos verdes, e dependendo da incidência do sol, verde-escuro, verde-claro, verde-musgo, parecia tão improvável e tão lentamente os olhos expressavam o medo, o receio, até formarem as lágrimas que ele nunca teve coragem de mostrar. Logo veio o mal estar, a vontade de se ausentar, o peso mórbido diante de um maldito amigo que conhecia antes mesmo de nascer. Tão sem movimentos veio a tona a conversa de dois dias atrás, o esforço danado para se esconder, a queda-de-braço, a bituca de cigarro, a insegurança que fingiam não existir. Viram-se fugindo, se evitando e não resistindo. Como nas outras vezes, uma espécie de ira plácida dominou os seus olhos, contaminou com raiva todos os seus freios, esculpindo uma vontade de lançar o outro na parede cento e vinte vezes. Comportavam-se às vezes como dois cães raivosos se estranhando sobre a grama. Orgulhosos, negavam a manipulação para identicamente negarem o perdão, ambos usavam de seus comentários inocentes como gatilhos de armas equipadas com silenciadores, de forma que na maioria dos casos eram precisas poucas palavras. Poucas semanas foram o suficiente para que tudo estivesse montado para a famigerada separação, sem despedidas ou panos, caminhavam como cowboys em sentidos contrários e então, deixavam o queijo de lado e se abraçavam sem chorar.
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Correspondências
terça-feira, 2 de setembro de 2003
Refúgio
Estamos dentro.
Dentro da noite escura,
dentro da selva profunda.
Dentro do medo,
dentro da dor de dentro pra fora.
Dos grandes tombos
que nasceu a vontade pela dança.
Das grandes mágoas
que surgiu a temperança.
Do sempre certo, do sempre tédio.
Do sempre sempre é que veio o suicídio.
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Devaneios
sábado, 30 de agosto de 2003
Cotidiano
Aprendeu a encarar as mulheres desconhecidas que sentavam ao seu lado no ônibus e se punha a pensar nas inúmeras histórias fantásticas que cada uma delas poderiam guardar. Seriam capazes de convencê-lo? Imaginava seus corpos diante de qualquer besteira e suas bocas carnudas mentindo: se existia um jogo que lhe estimulava era o de decifrar, só pelo sibilar das palavras, a distância natural entre o que contamos e o que vivemos. Era uma forma de fazer o relógio girar, pois precisava parar de lamentar a perda do pouco tempo que lhe restava, do pouco tempo que permaneceria sempre sendo pouco.
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Devaneios
sexta-feira, 29 de agosto de 2003
Pomo de Adão
Ninguém notaria qualquer mudança naquele bairro décadas antes ou depois da passagem de qualquer forasteiro. À noite, então, notaria menos ainda. O caso é que não haviam muitas testemunhas de recordação ou artistas representativos, eram raros os que se arriscavam a um passeio seguro e decadente entre as paredes de tijolos caídos, cachorros magros, indigentes, baratas e putas bêbadas com mais de cinquenta. Toda lembrança passava de cabeça para cabeça e justamente por se sentir atraído pela negação das generalidades, nosso jovem rapaz - belo rapaz para as bichas travestidas - resolvera sentar no chão, talvez bêbado, talvez não, se encostando a um poste cuja lâmpada velha falhava a cada dois minutos cronometrados. Seus cabelos eram tão curtos quanto os dos soldados recém recrutados para a Guerra, se um segundo andarilho se aproximasse na penumbra, notaria em primeiro lugar os brilhantes olhos vermelhos, olhos inumanos, comuns aos jovens abandonados pelos amores que fugiam daquela região. No entanto, tratava-se de olhos de quem não era dali, não daquela rua, nem daquele lugar, até mesmo do país, olhos de assassino, olhos de gato, um sorriso discreto de solidão. Acostumado a também não respeitar coisa alguma, o rapaz não durou muito sentado, olhou com certo rancor para toda decrepitude a sua volta na desesperança de encontrar um de seus convivas: tinha se dado conta dos sinais, sinais não semióticos, da forte tempestade que vinha acometendo todo aquele vilarejo nos últimos dias. Pegou sua jaqueta da moda, acendeu um cigarro de rolo barato e inundado de filáucia entrou no beco escuro onde garotos se passavam por homens.
Pietro era um daqueles típicos personagens de filme de espião, sem o glamour das armas, carros e mulheres de um 007, talvez estivesse mais para um pastiche da madrugada, capengando como um trôpego de Bukowski sem talento algum para proteger a rainha: estava ali só para matar um comunista, um desses intelectuais chatos que reclamam de tudo, adoram a miséria e gostam de escrever poesia. Mesmo com passos milimetricamente coordenados e curtos, não demorou muito para que estivesse em pé, ainda com seu cigarro, em frente ao bar boêmio célebre por suas reuniões subversivas. O lugar, contudo, estava vazio, tudo um pouco revirado, mesas, cadeiras, cacos de vidro por todos os lados, algumas paredes marcavam os quadros roubados, apenas um espelho se mantinha intacto. Uma mulher sentada com a perna quebrada não parava de gritar adensando a insalubridade da região: só não conseguia entender porque teria sido contratado para matar alguém numa bodega que iminentemente seria destruída. Pretendia tomar até duas cervejas antes do serviço. Não seria daquela vez. Parado, não se olhando no espelho, contemplando a dor da mulher machucada, relevando que ao menos já estava com metade do dinheiro, escutou um barulho nas suas costas, levou um susto por não estar acostumado a ser surpreendido. Virou devagar, quase em reconhecimento, e se deparou com um garoto sentado no chão, murmurando algum dialeto, encostado em um poste com um isqueiro em suas mãos em permanente faísca. Pietro reconheceu instantaneamente a sua vítima. Colocou a mão na arma guardada na calça, decidiu pelo pescoço e hesitou: não por matar de forma desleal sem dar possibilidade de defesa, não por sequer dar a entender que estava atacando. Isso era inteiramente comum no antro dos caçadores. Não o faria pelo arranjo arbitrário das pernas na calçada que lhe deu uma estranha vontade de comer mostarda. Pietro nunca mataria alguém que sentasse de forma idêntica a sua. Não sem primeiro fazer um ritual.
Terminou colocando as mãos dentro da jaqueta, se aproximou e ofereceu um cigarro. A voz de Pietro não fez o outro rapaz, Fabrício era o nome que tinham lhe dito, esboçar uma mínima reação. Insistiu. Fabrício pegou cigarro e o acendeu com seu próprio isqueiro. Pietro sentou ao seu lado e os dois ficaram sem dizer uma única palavra. A fina chuva tornava-se mais forte todavia nenhum dos dois pareciam se preocupar: olhos vermelhos diante de olhos vermelhos saberiam sempre se reconhecer. Foi pelo silêncio que começaram a se respeitar. Ficaram olhando o raro movimento das ruas: alguns carros de senhores bem vestidos contratando putas, dois imigrantes gritando ao longe alguma língua deplorável, a mulher de perna quebrada perdendo a voz de tanto gritar. Fabrício se levantou, foi até as ruínas do bar, Pietro hesitou novamente, relaxando em seguida ao ver o rapaz voltar com duas garrafas de vinho abertas. Não sabiam bem como tinham sido contaminados, conversavam sobre o passado, ambos desconheciam o momento da transição. Fabrício era o que Pietro considerava intelectual de esquerda, aquele que quis se reprimir individualmente para tentar viver coletivamente e Pietro era para Fabrício um rebelde sem causa, sem rumo, não se apegava a ideologia de época alguma, um matador de terceira que trocava qualquer coisa por sangue de suas vítimas. No final das contas, nem sentavam de maneira tão parecidas assim. Terminaram os vinhos, se levantaram, cumprimentaram-se pelos olhos e seguiram caminhos opostos. Pietro não completou dois de seus milimétricos passos, virou e atirou três vezes. Ainda que vampiro, não deixaria aquele pomo de adão escapar.
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terça-feira, 26 de agosto de 2003
The End
Quando penso nas pessoas que não cortei pela raiz no início do encantamento, que deixei mais que as raízes fossem o mais profundo possível, expandindo a relação para além da fronteira do dizível, pessoas cujos galhos, flores e gravidade floresceram aos meus olhos até se tornarem a árvore mais bonita, preciso dizer que quando for necessário me despedir, sendo naturalmente uma despedida daquelas que não podem ser desfeitas e daquelas que titubeamos vinte nove vezes antes de decidir firmemente, às vezes nem decidimos, gostaria que não houvesse peso, mas beleza, que as pessoas não sentissem falta, eu sou assim, e levassem consigo as palavras a seguir:
This is the end
Beautiful friend
This is the end
My only friend, the end
Of our elaborate plans, the end
Of everything that stands, the end
No safety or surprise, the end
I'll never look into your eyes...again
Can you picture what will be
So limitless and free
Desperately in need...of some...stranger's hand
In a...desperate land ?
...
This is the end, Beautiful friend
This is the end, My only friend, the end
It hurts to set you free
But you'll never follow me
The end of laughter and soft lies
The end of nights we tried to die
This is the end
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sábado, 23 de agosto de 2003
Sonho
“Sophia Loren, o que fazes aqui nesse baile mantendo essa face tão nova? Dentro deste vestido estás formosa como nunca antes te vi. Por que crias essa neblina em volta de teu pescoço? A quem queres seduzir, senão ao meu pai, que sequer consigo imaginar por aqui? Fumaça, jóias e palavras; as suas estão acima de todas as outras e não há como competir. Você é a mais charmosa das senhoras e é por você que todos estão aqui.”
“O que fazes aqui, meu filho querido? Esse tempo não é seu e aqui, nesse baile, ainda nem conheço o seu pai que está muito longe de ser um Marcelo Mastroianni. Apaixonarei-me mais tarde pelo coração dele, mas aprenderei que isso não será o bastante em minha vida e por isso sempre esconderei um olhar triste em meu parecer. Voltas para a tua vida de anos mais tarde. Voltas e vê o tempo em minha face. Voltas para olhar a tua mãe sem más palavras. Esqueces do que vistes aqui, pois isto não passa de um sonho seu invadindo uma lembrança minha. Este é um passado que não vive em nenhuma foto e que não encontrarás em parte alguma de minha memória.”
“Volto como mandas, mas me agracie com um beijo antes disso. Nunca pensei em te ver assim. Eras antes de dormir apenas a minha mãe.”
“Voltas e me abraças lá como nunca antes fizeste, pois é lá que sou a tua mãe e disso não te esqueças em nenhum momento. Aqui, para você, não passo de uma estranha.”
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sábado, 12 de julho de 2003
Minotauro
Para não submergir na melancolia, cartografar a alma de labirinto.
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sexta-feira, 11 de julho de 2003
quinta-feira, 19 de junho de 2003
Fusão
Isso sem cores que acontece entre olhos é o tempo que nos afasta e a inspiração que me atrai.
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segunda-feira, 16 de junho de 2003
Vagabundos
A falta de um convite, a falta de sono, os cigarros desgarrados e as marcas no colchão fizeram o sol se confundir com a lua, fizeram a elucidação do colírio uma saída de loucura; fizeram a poética renascer no âmago de dois olhos cegos. O abraço desprendido, o olhar curioso, o catarro nervoso que deixou escapar pelo seu rosto tornaram a pose um delubro; o passado, um escombro; fizeram os garotos porem o dedo na tomada e sentirem o choque com prazer nos lábios. O relógio fora de tempo, as horas que não passavam, as tramas que não vingaram fizeram da noite um arrastado de britas; do desejo uma culpa gigante; fizeram a violência crescer e crescer e crescer durante toda fuga. A coragem estendida, o frio na garganta e o frio na barriga, as palavras e o fim ríspido num contido silêncio fizeram do seu sorriso, uma boca sem dentes; fizeram com que aqueles dois garotos vulgares caíssem novamente com a face esgotada sobre chão.
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quinta-feira, 5 de junho de 2003
Meng Po
Um dia ela acordou como se desconhecesse o homem com quem dormia, como se não lembrasse do parco vestido branco e da fracassada noite de núpcias, olhou as tulipas amarelas de plástico e ignorou a antiga presença dos convidados anônimos e de seus punhados de arroz. Acordou e esqueceu de passar a roupa dele, não fez cuscuz com ovo como suas tias tinham lhe ordenado, tomou sozinha um chá de carqueja, olhou as cuecas no balde - algumas com o fundo bem sujo de merda - e mergulhou em sua antiga rotina. Costumava beijar seus amigos na boca e na testa, tomava banho de açude nas quintas e bebia todos os copos nos finais de semana, misturava cachaça, cerveja, homem, pó, maconha e gaia, passava o domingo esperando o cheiroso almoço de sua mãe, na segunda terminava o sudário da recuperação e na terça adentrava a vidinha saudável, fazia natação e jantava granola com iogurte de laranja com cenoura. A pequena e negra Camila era uma dessas garotas que viviam atrapalhadas com a solidão, tinha uma aliança no dedo e apenas planejava desistir da conformação, de maneira que na fila do supermercado, fazendo a segunda feira do mês sem batatinhas - estava de regime - ignorou os preços abusivos, as marcas repetidas, despertando apenas quando dois garotos atrás dela na fila não paravam de empurrar um ao outro: "onde tu cortou esse teu cabelo não tinha pra homem, não?". Os dois riam, riam e riam, enquanto ela pagava a conta com o cartão do marido. Antes de voltar de bicicleta, tomou um chá de erva doce num quiosque pobretão, observou as famílias saindo pela porta, descendo a ladeira, felizes com seus carrinhos inundados de compras e lembrou de uma palavra que aprendeu com sua avó: perdulário. "Que ou o que despreza seus interesses. Gastador, dissipador". Chegando em casa, fez um bolo, desistiu da cobertura de limão, tomou um chá de hortelã, arrumou a mala do rapaz com quem tinha casado e que sequer lembrava o nome, ele não tinha aparecido depois do expediente, era uma sexta, devia ser normal e ela resolveu passar a noite escrevendo num diário como há anos não fazia. Entre um chá e outro, talvez nunca tivesse feito. Quando o dia já ia amanhecendo, escreveu sua última frase, desejando que o mundo sucumbisse ao apocalipse zumbi "só para sobrar mais chocolate para mim". Tomou seu último chá dos cinco sabores, um chá forte de camomila adoçado com mel, e acordou às seis com a casa absolutamente vazia. Botou um biquini e foi nadar.
domingo, 1 de junho de 2003
sexta-feira, 30 de maio de 2003
Barbie
Não era meio-dia, não tinha acordado de ressaca, não precisaria roubar absorventes da sua cunhada. Ainda assim, levantou um pouco zonza da cama, viu por uma persiana que a empregada da casa de seu namorado-quase noivo estava perto de terminar o almoço e caminhou descalça para alimentar os hamsters e trocar a água. Passaram trinta minutos no rádio-relógio, para que ela, depois de fumar seu segundo cigarro na varanda e olhar todas aquelas casas condenadas, depois de guardar no cesto duas ou três roupas dele espalhadas pela sala, depois de escutar a canção-tema do Globo Espetacular, pa-pa-pa-pa pa-pa-pa, precisou admitir que não era mais capaz de conduzi-lo até onde ela queria chegar, que mesmo que desejasse muito, quisesse muito, sonhasse muito, simplesmente não conseguiria reverter a mortificação dos corpos. Tinha cansado das tangentes viciosas, não aguentava mais comparar o que tinha sido com o que estava sendo, os olhares daquela terça e os olhares de ontem, de tal modo que, num ímpeto de felicidade e confusão, num ímpeto de força que quase a deixou ser ar, se tornou uma dessas mulheres que cada vez mais estão preparadas não apenas para o fim como para dez mil passos além.
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quinta-feira, 29 de maio de 2003
Lojas Americanas
Fiquei sabendo há poucas horas de uma história engraçadinha e ordinária que aconteceu com uma amiga minha. Ok, pra ela deve ter sido super foda, mas como estou aqui pra rir da desgraça alheia, vou adentrar pelo lado humorístico da coisa. Essa minha amiga costumava pegar coisas nas Lojas Americanas e não pagar, geralmente material escolar, tipo folhas de fichário, caneta, lápis, borracha, corretivo. Acontece que na sua última investida, ela foi pega pelos seguranças da loja e isso ocorreu justamente quando, mais ousada, tinha decidido fazer seu primeiro roubo de médio porte. Pois é, tava fazendo a feira escolar. Não sei bem como foi a abordagem inicial, se foi algo escandaloso presa-em-nome-da-lei-pessoas-correndo ou algo na linha serviço-secreto-tudo-silencioso-e-discreto, só sei que a levaram para uma sala, fico imaginando aquelas salas vazias com uma cadeira no centro, e deixaram ela lá esperando os seus pais chegarem. Passados uns vinte minutos, o segurança voltou e não fez o esperado e clichê terror psicológico, pelo contrário, avisou de antemão que ela não ia descer para o "bom pastor" porque era 'dimenor', nem que ia parar na DPCA porque não tinha cara de 'alma sebosa'. Daí chega o pai, pensa logo que alguém havia servido de cúmplice ou mentor até a própria, queridinha-xixuxa, afirmar que estava 'agindo sozinha'. Putz, eu pagava pra escutá-la dizendo isso. Obviamente depois de tudo resolvido, seus pais tiveram uma longa conversa, perguntaram se estava com algum problema, se queria ajuda médica, se estava fumando maconha, o básico de sempre na tentativa de entender o que tinha levado sua filhinha-queridinha-xixuxa a fazer aquilo. Claro que a garota se fez de vítima pra sair na boa. Ficou acertado que ela não seria punida porque claramente estava passando por um momento delicado e que este fato se manteria escondido do resto da família. Bem típico da classe média. Só sei que no mesmo dia ela me disse que foi para o bigode jogar dominó e se a bem conheço, beber vinho carreteiro. Eita, quase ia esquecendo de um detalhe importante: claro que quando o pai dela chegou na loja, a primeira coisa que ele pediu para ver foi a fita do sistema de segurança, daí alertaram que se ele visse a fita, a famigerada fita, o caso seria levado ao tribunal. Pelo que consta, rolou ainda um momento moral-da-história-em-forma-de-ameaça por parte de algum responsável da loja, dizendo que se ela se envolvesse em outra empreitada dessa em qualquer uma das Lojas Americanas, não ia ter boquinha, ia direto para a DPCA. Se eu estivesse por lá não deixaria de lembrar que ela completa 18 anos no final do próximo mês. De qualquer forma, tenho que admitir que adoro mesmo meus amigos por me nutrirem de furadas tão legais e originais: a cereja do bolo é o simples fato de que essa amiga, toda certinha, era uma das quais eu achava impossível passar por uma dessa. Ainda bem que as pessoas mudam. Só assim para nos surpreenderem.
segunda-feira, 19 de maio de 2003
Óptica
Olhos de vidro, de espelho quebrado, de rosto ferido: os vesgos olhos estão fechados nesse vivo corpo de eterna cegueira.
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quinta-feira, 15 de maio de 2003
Utopias
"A vida deveria ser de trás para frente. Nós deveríamos morrer primeiro, se livrar logo disso. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante para puder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, faz festas e se prepara pra faculdade. Você vai para o colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta para o útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando e termina tudo com um ótimo orgasmo!!!"
(Supostamente) Charles Chaplin
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Apuds
sábado, 10 de maio de 2003
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Conto os dias nos dedos, faço risquinhos nas paredes, guardo as unhas dos pés.
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Devaneios
domingo, 4 de maio de 2003
Cerveja
Aí deu uma vontade louca de tomar cerveja, daquelas que você fica feliz só pela vontade, liguei para minha companheira oficial de cachaça ltda e ela recusou toda braba porque tinha que fazer brigadeiro. Fiquei meio desolado, estava ali pela Rosa e Silva, não sabia bem onde passava meu ônibus, então decidi seguir uma rua qualquer e andar sem lenço e com documento no começo da noite. É sempre bom fazer um passeio de reconhecimento nos bairros que você pouco frequenta. Daí quando cheguei na parada de ônibus, numa praça bem bonita cheia de eucaliptos, fui perguntar sobre o riodoce/cdu a uma senhora que ali se encontrava. Meu irmão, posso até não ganhar no bingo ou no pernambuco da sorte, mas é incrível como as pessoas se abrem comigo sem motivo aparente até porque, pra começo de história, estou muito longe de ser a barraca da simpatia. Então, a senhora começou a dizer todos os ônibus que passavam por lá, um por um, qual demorava mais, qual demorava menos, depois explicou que a parada tinha mudado de lugar, explicou o motivo, reclamou porque não concordava com o motivo, disse que morava não sei onde depois de San Martin, que passava mais de uma hora dentro do coletivo e que nem sempre os jovens ofereciam o lugar para ela sentar. A bichinha falou tanto em tão pouco tempo, tão exasperada, que quase a convidei pra tomar uma cerveja comigo, se fosse mais jovem até rolava, mas logo depois fiquei intrigado, pensando nas pessoas que falam muito com estranhos, tomado pela sensação de que isso acontece, para além das que são naturalmente gralhas e grilos, por ser a primeira vez no dia que elas estão, de fato, conversando com alguém. Bateu a culpa melancólica e terminei dando a maior bola pro papo da senhora, ela era bem solícita pra falar a verdade, tanto que fez questão de me avisar quando meu ônibus apareceu, mesmo que eu já o tivesse visto bem antes, e fez questão de dar parada i-n-s-i-s-t-e-n-t-e-m-e-n-t-e. Subi no coletivo, lotado, normal e quando estou pegando meu passe-fácil, sinto uma mão segurando meu braço com força e tremelique. Olho desconfiado achando ser alguém conhecido e dou de cara com uma mulher que nunca vi mais gorda, daí faço uma expressão de dúvida e ela solta: 'desculpa, achei que você fosse cair'. Sem dúvida tava chapada, não porque ficou a viagem toda traseirando e falando besteiras sem sentido, mas pelo simples fato de que senti o bom cheiro da erva maldita quando passei por perto. Talvez isso tenha contribuído para que eu ficasse a caxangá inteira visualizando uma cerveja, de tal modo que, desci duas paradas antes só pra dar um pulo num lugar onde sempre tem conhecidos dando bobeira. Ontem não tinha uma alma sequer e beber sozinho é fim de carreira demais até mesmo para mim. Cheguei em casa todo cabisbaixo, finalmente tinha admitido a completa derrota, liguei o computador pronto pra reclamar da vida com alguém no msn, quando eis que minha mãe entrou sorrateira no meu quarto e perguntou pela primeira vez desde que me entendo por gente: "Rodrigo, quer uma cerveja? Comprei algumas...". Você nega o quanto pode, faz a adolescência valer até o último minuto, mas tem coisas que só a sua mãe pode fazer por você.
sexta-feira, 2 de maio de 2003
Chatolino
Daí chegam os dias de chuva na cidade, me deixo guiar pela preguiça mórbida, bate aquela vontade de ficar em casa, sentir o frio que só rola no meu bairro, adentrar no transe que o som de água caindo proporciona e tudo se encaminha perfeitamente para o fluir completo da mazela humana. Parece-me tão dentro dos conformes ter seus dias de vegetal, que não consigo entender a motivação das pessoas que grudam suas mãos ao telefone e não entendem o princípio básico dos que desertaram da matilha: chamam pra ir ao cinema, digo que não, ligam de novo pra saber o que estou fazendo, digo que nada, ligam pra assistir filme na casa de não sei quem, mando se fuder. Pronto, mal-estar criado, só tenho a agradecer pelos convites, liguem sempre, mas por favor não insistam. Gostaria até de desenhar minha lógica e sei que se o fizesse direitinho, terminariam compreendendo. De qualquer modo, basta correlacionar 'tenho mais o que fazer' e 'não tenho o que fazer' e fingir que ambas as orações adquiriram o mesmo significado.
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sexta-feira, 25 de abril de 2003
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Devo rasgar apenas uma foto, mas se preciso toco fogo no baú inteiro.
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Devaneios
sábado, 12 de abril de 2003
Pérfido
Foi das poças de lama que tiraste as folhas secas
E reviveste de fulgor o fio de tua ira.
E reviveste de fulgor o fio de tua ira.
Foi da noite, nunca esqueças,
Que nascera o mais belo dos teus filhos.
Foi do seio de uma loba
Que nascera o mais belo dos teus filhos.
Foi do seio de uma loba
Que rasgaste o véu que encobria a tua face.
Não cansas de fluir o tango que carrega em mãos
E os corpos que se esvaem em mil.
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quinta-feira, 10 de abril de 2003
terça-feira, 18 de março de 2003
Mexericos
diante das janelas,
sem vista,
sem vista,
contínuas,
olhando nuvens,
sem chuva,
sem chuva,
antigas,
imagino um lago,
imagino um rio,
imagino um mar,
sem peixes,
imagino um mar,
sem peixes,
macios.
nego calçadas,
sem cadeiras
e sem fofoca.
nego a praça,
sem conversa,
sororoca.
as ruas,
as pontes,
as linhas,
sem pessoas,
estão mortas.
e o pior: ninguém quis pular corda
nego calçadas,
sem cadeiras
e sem fofoca.
nego a praça,
sem conversa,
sororoca.
as ruas,
as pontes,
as linhas,
sem pessoas,
estão mortas.
e o pior: ninguém quis pular corda
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terça-feira, 4 de março de 2003
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Nunca neguei o prazer de inventar mistérios só para depois destruí-los.
(e não desvendá-los).
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