Nada mais rebeldia adolescente que Nirvana escrito com 'a' de anarquismo, Beatles espalhados por todos os lados, todas as matérias, todos os horários, recados pelo meio, recados apagados, errorex seco e velho dando sentido duplo a mil e um comentários. Nunca fui de prestar muita atenção nas aulas de química do professor pardal e seu mundinho de cabritas no cio, balanceamento pelo método da oxirredução, definição de ácido, básico, neutro, pontos de fusão e ebulição: costumava intercalar cada cadeia de carbono com um punhado de poemas encantados e intermediar a cisão heterolítica com uma cesta de bolinhas de papel. Não sei bem como mantinha o ritmo, mas ao invés de estudar geometria, escrevia dezenas de contos onde a exacerbada atmosfera heterossexual - das brincadeirinhas, da brodagem, da cachaça - era usada para despertar enrustidas fagulhas de homoerotismo. Tudo se resumia a uma privada vomitada e a uma vontade interminável de fazer sexo. Era bem o clima nascente - entre a descoberta e o abandono - do primeiro semestre de 2001. Ainda mantinha o fascínio infantil pela Segunda Guerra, às vezes nos sonhos encarnava o herói e, numa Itália que pendia entre a imponência histórica e a tagarelice Terra Nostra, terminava salvando os amigos de trincheiras, atentados e bombardeios: atravessávamos com garrafas de vinho os becos de Nápoles e ouvíamos os gritos femininos sobre os varais de novela. No entanto, não tratava-se apenas de um fascínio lúdico, também tinha lá sua aspereza metodológica: montava cronogramas, dados e fichamentos, a Alemanha e seus 12 mil aviões de guerra, sendo 6 mil de primeira linha, via a Luftwaffe sobrevoando Londres, a vingança dos aliados na destruição de Dresden, mortos e mais mortos na Polônia; imaginava a tensão dos britânicos e americanos desembarcando numa França de orgulho remoído, pára-quedistas vivos, o general raposa do deserto no norte da África, frotas construídas e destruídas, toneladas de ferro contorcido todos os dias. Talvez aos dezesseis anos tenha escrito meu último poeminha de amor: desde então, toda vontade silencia-se em cartas e e-mails melancólicos. Não era muito bom em física e isso é óbvio: cinemática vetorial, eletrostática, deixei de entender matemática quando chegamos à função polinominal do segundo grau, não fazia ideia do que eram zeros ou raízes de uma função quadrática. Sou dos que nunca chegaram perto de aprender logaritmo.
Entre uma piadinha e outra, entre organizar e desfazer o clubinho de xadrez, até que prestava atenção nas aulas de literatura e, com todo clichê de 'garotinho de bagunça', odiava a primeira geração romântica, José de Alencar, Gonçalves Dias, vivia de riscar bancas fazendo 'trocadalhos do carilho' com seus pobres versos sobre palmeiras e índios. Depois ia na biblioteca, onde costumava passar alguns recreios conversando com a bibliotecária, e roubava Noite na Taverna, um livro de poesia concreta e dois ou três sobre a Segunda Guerra. O Ensino Médio era mesmo um arrastão de aulas desesperadas, três matemáticas, duas geografias, duas químicas, sei lá quantas físicas, professor de biologia cantando música-decoreba, redação, interpretação, gramática, classificação do sujeito, sujeito indeterminado, sujeito implícito e a professora de português fazendo a putinha com seus vestidos cada vez mais curtos. Pior que no meio disso tudo, batia a vontade sincera de estudar sobre a história da Rússia, da época czarista aos mencheviques, para poder, enfim, entender a formação dos sovietes. Essa ânsia vinha desde a sétima série, as coisas começaram a dar errado quando Stálin subiu ao poder, sacramentando a impossibilidade de eu chegar ao fim dos contos infinitos. Inúmeros envolviam grupinhos rebeldes - triângulos amorosos - durante a ditadura, brotando de toda minha pós-memória e exercitando a nostalgia pelo que não vivi. Misturava minha vida com a dos pichadores punidos pelos milicos de bigode, torturas num mundo de colégios internos violentamente religiosos, emboscadas de capatazes que usavam de chicotes em salas com correntes, uma verdadeira paródia de O Ateneu pra quem tinha assistido há pouco tempo O que é isso companheiro. Seja como for, realmente foi uma sorte danada eu não ter me tornado um psicopata dos bons, porque desenvolver um infográfico com cotação dos amigos da várzea só pode ser a prova viva que estava prontamente no caminho. Subdividia todos em categorias numa atitude assustadoramente racional. Contudo, para atingir o sétimo sentido do cosmo, o batido CD vermelho só com as músicas number 1 dos beatles me ensinava sobre a eterna vontade de estar longe-perto perto-longe dos amigos. As contracapas dos cadernos antigos deixam claro que - na capa tinha Daniella Sarahyba mostrando a barriguinha - foi em 2001 que comecei a acreditar que a psicodelia poderia salvar o mundo. Dali pro hotmail devem ter sido cinco passos.
Definitivamente não me interessava por História do Brasil, menos ainda pela península ibérica, sou Almeida, mas pouco me importava com os mouros, califas, preferia delirar com as cidades de Antuérpia, Veneza e Gênova no início da Idade Moderna ou mesmo Atenas e Roma na Idade Antiga. Torcia pela Itália nos campeonatos só por ser um país de beleza e quando os professores começavam a falar sobre a América, batia o tédio, decidia gazear, não entendia a relevância da conversa de índio, bocejava com a vingança da antropologia. Enquanto isso, escrevia mais contos. Inventava dois irmãos gêmeos, um judeu e um nazista, criando um melodrama da falta de noção levemente incestuoso. Sempre adorei Éramos seis e simpatizava com Biologia até estudar o corpo humano, reprodução, escroto, frênulo, grandes e pequenos lábios, um mar de espermatozóides. Certa vez fiz um desenho genial de um coração pulsando. Sunshine, sins and flowers - algumas lembranças hão de ficar sem tradução. Uma amigo vivia dizendo que eu devia acabar com minha pose de presidente da Academia Brasileira de Letras, mas não me continha e, quando possível, corrigia todos os erros do professor de História Geral que ensinava processos através de subtópicos. Socialismo utópico, científico, unificação da Itália. Vivia enxergando os camisas vermelhas conquistando o sul ao som de A Day in the Life. Entre as aulas da Primeira Guerra e da Revolução Russa, descobria uma pirâmide social onde os mujiques se escondiam lá no fundo. Cultivei uma obsessão pelos domínios sangrentos, por cada guerra ou batalha da humanidade, pela ânsia de inventar armas, desde as guerras médicas, do peloponeso, sonhava com a destruição de Cartago. Quando descobri na Barsa que a Guerra dos Cem Anos tinha durado cento e dezesseis deixei de acreditar em muita coisa, mas continuava a odiar Nero todos os dias pela petulância de colocar fogo em Roma. As amigas riscavam os cadernos dia sim e dia não. Cyba. R.P.N. Rebeka. Ana p. Ana c. Um desenho de raposão. O tico e teco de Maíra prontos para não funcionarem. Entre cada bloco de matéria era possível encontrar curiosidades de StarWars, uma cronologia maluca da família Skywalker, sugestões de filmes entre os filmes existentes. Nas duas últimas folhas, todos os livros do primeiro e segundo anos da Escola de Magia de Hogwarts, com a relação de cada professor e a disciplina correspondente. Minha barba era uma rala barbicha e ainda escrevia fugir-de-casa com j.
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