sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Declínio

Para quem se acostumou a lidar com os obstáculos, espinhos amarelos e pedregulhos persistentes como objetos naturais de um jogo de xadrez contra uma força superior, onde para cada ato ou comentário politicamente incorreto, para cada pequena maldade prazerosa e sobretudo para cada golpe de esperteza, tinha de arcar com um ou dois peões em jogadas posteriores, tenho de admitir que desde que soube, há exatamente um mês, que não passei na seleção do doutorado da USP, todas as minhas peças-guerreiras parecem estar, uma a uma, sumindo do tabuleiro. Entre quadrados brancos e pretos abarrotados de sorrisos de nylon e chuvas de verão, lembro do cigarro que apaguei antes do banho de piscina em que perdi meus recém comprados óculos escuros, nada, claro, que se equiparasse ao fatídico dia antes do reveillon em que uma amiga derrubou uma taça de vinho - um lambrusco - no meu macbook pré-adolescente, resultando em perda total, apenas o HD e a bateria resistiram, a assistência não cobriu, considerou negligência, a técnica vesga me encarou de frente e riu na minha cara. Na maioria das vezes que o jogador perde uma peça inesperada no xadrez, se desespera, ataca sem consciência dos vacilos e termina por perder várias outras em sequência: respirei, dei algumas voltas na piscina, encarnei o jogador experiente, li Cortázar e aprendi sobre cronópios, famas e esperanças, mantive a calma e talvez tenha me aproximado com muito esforço da anestesia. Contudo, como um bom devorador de crianças, Moloch, Deus ancião adorado no submundo fenício, continuou sua investida: hoje meu notebook velho - e mutilado - de guerra parou de funcionar, a memória desistiu, o windows não abriu, o leitor de CD/DVD já não funcionava. Para fechar com chave de ouro o genocídio de extensões tecnológicas, semana passada fui assaltado com um picador de gelo e levaram meu celular ching-ling. Durante esse jogo de xadrez imaginário, os ganhos e perdas costumavam variar variar variar de tal modo a se igualar, nunca deixando um dos adversários completamente arrasado. Talvez os que tenham assistido O imaginário do Doutor Parnassus e conheçam de pactos faustianos entendam melhor e mesmo levando em conta os difíceis inícios de ano que percorri na última década - das cartas para tios desaparecidos, dos peitos escondidos na geladeira aos sonhos arrancados pelo talo - nada conseguiu me deixar tão desarmado, tão encurralado, como uma galinha depenada diante de uma raposa: prestes a receber um xeque-mate daqui duas ou três jogadas, não visualizo minhas torres, meus bispos ou cavalos, tento me mover na ausência de peças no maldito ano dedicado justamente aos peixes. Faz tempo que não jogo em 'L', o rei lembra um artista mambembe do centro da cidade e minha rainha continua embalsamada, devastada, escutando os ofegantes comentários familiares. O tempo passa, devo estar devendo uma temporada no inferno e Bryan Ferry, num rádio a pilha encontrado no lixo, seguindo os passos de Caetano e Beth Gibbons, não para de repetir trinta, setenta, duzentos e quarenta vezes: I didn´t know which way to turn, can´t control my feelings if I tried, right from wrong from left to right, I didn´t know which way to turn, walk on ice feel your fingers burn. O pior não é o fim do jogo, não é a repetição da música, não as perdas sucessivas, mas a sensação de estar sendo forçado a desistir.

4 comentários:

Felipe Azevedo disse...

quando acabei e ler esse post minha conexão caiu

Rodrigo Almeida disse...

Segundo Galeano, aufheben era o "verbo preferido de Hegel, entre todos os verbos do idioma alemão. aufheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria".

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Cybele Miranda disse...

Agora tu pode voltar lá no editor e usar aquele sublinhado, que na verdade passa no meio das palavras, pq eu achei teu óculos.
E sempre que precisar pode descansar esse Rei cansado de lutar naquele sofazinho varzeano.

Edson disse...

O cara do picador de gelo te assaltou no Recife Antigo? Deve ter sido o mesmo que levou o meu celular, comprado três dias antes.