“Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi”. (CALVINO: 2003, p. 15)
Antes de resgatar o emblemático filme Em Construção (Espanha, 2001), de José Luís Guerín, não seria deselegante esboçar uma nota sobre a amplitude de produções audiovisuais que vem se dedicando nos últimos anos a discutir e meditar sobre os rumos do desenvolvimento urbano das grandes cidades. Só na recente produção recifense temos os curtas-metragens Eiffel (2008), de Luiz Joaquim, Recife Frio (2009), de Kleber Mendonça Filho e Retinianas (2010), de Luís Henrique Leal. Entre os longas-metragens, não poderíamos esquecer de Um Lugar ao Sol (2009), cuja postura ideológica é reafirmada tanto pelo registro da verticalização e suas sombras, como pelo rompimento da comum complacência entre o documentarista (Gabriel Mascaro) e seus entrevistados (moradores de coberturas). Isso para não falar do projeto coletivo e colaborativo ‘Torres Gêmeas’, ainda em fase de montagem, que unirá diferentes olhares sobre as transfigurações da cidade a partir dos simbólicos e destoantes edifícios da Moura Dubeux. É notável como a maioria parte de uma mesma inquietação diante da passividade governamental e civil no processo de reordenamento espacial da sociedade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras, um reordenamento que reafirma a promíscua relação encrática de poder entre essas empresas, a especulação imobiliária sem controle e os políticos - cujo gozo ficou claro no resultado das eleições no final de 2010, quando soubemos nome por nome quem pagou a campanha de quem. As construtoras foram, sem dúvida, as grandes vencedoras.
No entanto, nem todas as reflexões conseguem atingir graus de perspicácia ou traduzir em imagens e sons seus intuitos ideológicos sem ter de sacrificar uma intenção estética, algumas iniciativas, inclusive, tornam a inquietação primeira - justa e totalmente justa – num esvaziamento do vigor imagético, tangendo o propósito pelo caminho da superficialidade e dos estereótipos fáceis, falsificando uma teoria até beirar o floreio. Não é o caso de todos citados acima. De qualquer forma, se existem as discussões que por mais bem intencionadas que sejam não necessariamente valem o filme que resultam, o diretor espanhol segue o caminho totalmente oposto, o de partir da inquietação já pontuada, de uma sociedade de consumo que não consegue lidar com suas colheitas e tragédias, para mergulhar num ensaio que traduz em igual intensidade também uma inquietação e invenção estéticas. O ponto de partida de Guerín considera como superadas as dicotomias entre forma e conteúdo, estética e política, não se rendendo a ‘estetização da política’, nem a ‘politização da estética’. Caminha com o filósofo francês Jacques Rancière: na comunhão ou adultério entre ambos os campos, entende que “a autonomia que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base” (2005, p. 26). No caso, um baú de imagens.
Em Construção foi produzido ao longo de três anos durante todas as etapas - das pré-pré as pós-pós - da construção de um moderno complexo residencial num bairro tradicional de Barcelona, o bairro chino, espaço urbano que congrega imigrantes de distintos lugares do mundo. O cineasta desenvolveu um estrito relacionamento entre a equipe, composta por estudantes da Universidade de Pompeu Fabra, e os moradores cujas casas seriam demolidas, passantes, vizinhos, pedreiros, engenheiros, arquitetos, senhoras, crianças, clientes. Justamente esse tempo de envolvimento do espanhol com os fluxos urbanos, o acúmulo de carros em vias sufocantes, a ascendência e padronização do concreto, a ausência de políticas públicas básicas, as demandas só ajustadas após tragédias, faz do filme um precioso registro de duração. Segue de mãos dadas com o cineasta Jia Zhang-Ke, em seu Still Life (China, 2006) que se enfileira na não tão longa fila das produções que só poderiam ser realizadas no 'enquanto', nem antes, nem depois, um caso exemplar de 'timing cinematográfico'. O filme se apega a um punhado de histórias enquanto uma cidade é destruída para ser inundada após a construção de uma grande represa. Por sua vez, o maior representante dessa tendência é Alemanha, Ano Zero (1948): se todas as obras carregam o tempo histórico do momento em que foram feitos, o filme de Roberto Rossellini - ao perpetuar a Berlim arruinada do pós-guerra e o espírito desamparado de uma época - talvez carregue um pouquinho mais. A construção, destruição e reconstrução estipulam um eterno retorno.
Ítalo Calvino nos conta sobre esse movimento no segundo e último parágrafo sobre Maurília:
Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes parecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília. (CALVINO, IDEM).
No caso de Guerín, cineasta extremamente consciente do cinema que faz, durante essa renovação da cidade, abaixo dos alicerces das antigas moradias e das fundações que sustentariam o novo e vistoso conjunto de prédios, os pedreiros se depararam com um antigo cemitério romano com vários esqueletos em bom estado de conservação: esse acaso aberto à vista pública da variada comunidade contemporânea despertou inúmeros comentários perspicazmente registrados pelo diretor. O passado se confunde com fantasias particulares do presente, revelando um hiato histórico no contemporâneo e desabrochando a óbvia - e pujante - sobreposição de tempos e cidades. Os ecos de mundo, da verticalidade urbana, das ruas vazias, da insegurança constante, dos interesses burgueses são contrastados com um passado enigmático. Assim sendo, a inquietação não abandona a linguagem para se apegar a uma possível crítica que despreza o mistério, menos ainda trata o seu próprio discurso, claro e muito claro, com uma sacada estupenda: Guerín recebeu por um tempo o estigma de 'cineasta social' por conta dessa produção, rótulo que sempre procurou negar, especialmente pela auto-complacência dos espectadores diante dos realizadores que erguem suas causas antes de suas armas. Chegou a usar o seu filme posterior, Na cidade de Sylvia (2006) como emblema ou manifesto de contestação ao rótulo equivocado: Em Construção tem lá sua crítica, mas os fotogramas se agarram a tudo que é mais cinematográfico a cada instante, do plano, da duração dos planos e do corte para fincar um mosaico de personagens e impactos, um mosaico de relações entre os indivíduos e as transformações espaciais da cidade em que vivem.
Qualquer viajante que parte para longe e retorna ao ser velho recanto, uns mais que outros, costuma se comover com as mudanças, tomados por nostalgia ou mesmo pela insegurança – ou terror – de desconhecer o que lhe é íntimo. Isso não é novo. Inúmeras cidades, não só a Maurília de Calvino como Recife, Roma e Paris, foram reorganizadas no processo de modernização que contraria qualquer estática. Não são poucos os filmes em que o italiano Pier Paolo Pasolini resgata antigas ruínas próximas a recentes construções, contrapondo o antigo e moderno, para assinalar uma complementaridade e crueldade monumental do encontro. Victor Hugo em seu imponente Os Miseráveis conta ainda no Século XIX o pequeno drama do indivíduo que
"depois que se ausentou, tem-se transformado a antiga cidade, tem surgido uma cidade nova que até certo ponto lhe é desconhecida. A sua predileção por Paris não necessita ser comprovada; Paris é a cidade natal de seu espírito. Em resultado das demolições e reconstruções, a Paris da sua mocidade, a Paris que religiosamente conservou na memória, é hoje uma Paris de outro tempo. Permita-se-lhe contudo falar dela como se ainda existisse. É possível que ao ponto a que o autor vai conduzir os leitores, dizendo-lhes: ‘na rua tal havia uma casa assim e assim’ não haja hoje nem casa nem rua. (HUGO, V., 1972: p. 261)
Mesmo que possa ser desmerecido pela naturalização no espectador, uma das singularidades de Em Construção reside nos cortes dentro de uma mesma cena, recurso inventado lá nos primórdios por Edwin S. Porter, que não apenas tende a reinventar completamente os planos como brinca com a impressão bidimensional do espaço. Não se trata de uma busca em vão, mas um direcionamento que discute essas reorganizações num nível que diferencia a história da memória das cidades: podemos ler sobre motivos e mudanças, mas não teremos a ligação afetiva dos olhares e dos relatos. Guerín reorganiza o espaço com a câmera em poucos segundos, assim como esse mesmo espaço vem sendo reorganizado e modificado fisicamente e mentalmente em poucos meses ao ponto de pensarmos que o problema não é a reorganização do espaço em si - as cidades sempre foram construídas em cima de cidades ao longo de toda trajetória humana - mas - tanto em filmes como em projetos arquitetônicos - a criatividade e interesses de quem rege. E no registro desse destino apático, de uma 'urbanização que desurbaniza e desumaniza a cidade', como diria Nestor Gárcia Canclini (2002) e de uma ausência de contraproposta dos que não cansam de chorar, o diretor espanhol usa de um cinema de invenção, de uma imaginação liberta no controle do dispositivo, de uma ausência de roteiro prévio, de uma aposta na sensibilidade e na partilha dos estímulos, que evoca um sonho utópico e discreto de cidades montadas e projetadas de maneiras tão inventivas como o são alguns filmes ou livros.
BIBLIOGRAFIA
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis; tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
CANCLINI, Nestor Gárcia Canclini. La reinvención de lo público en la videocultura urbana. IN Revista de Antropología Social : 135-154. Madrid: Universidade Complutense de Madrid, 2002.
HUGO, Victor. Os Miseráveis. Rio de Janeiro: EPB, 1972.
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo: Eixo experimental; Ed. 34, 2005.
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