terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Cinema

Desde sua invenção, o cinema já nos deu de tudo: de seres não humanóides em galáxias distantes a longas caminhadas por corredores vazios, nos vimos dentro de tramas mentais, policiais, sexuais, caímos em crônicas delicadas do cotidiano, vislumbramos as sinfonias das metrópoles, fomos mortos com mais de dez facadas dentro do banheiro. Continuamos o rumo. Conhecemos psicopatas mascarados, disfarçados, sonhamos com uma cena, com uma atriz, com várias delas. Vimos nosso planeta ser destruído uma dúzia de vezes. Não recuamos mesmo quando um diretor nos lançou em um labirinto infalível, deixando nossas mãos suadas, nos causando um riso nervoso, tal qual o que nos acomete quando a película1 se refere diretamente a um momento em que estamos passando. Conversamos com a morte, jogamos xadrez, vimos o vento balançar as folhas de um campo quase como se o víssemos agir pela primeira vez. Iniciamos a marcha. Desistimos das utopias de nossos pais, enfrentamos filas nas calçadas, nos shoppings e nos torrents, acordamos de madrugada para não perder um filme e, como últimos espectadores, desligamos emocionados as luzes dos cinemas de bairro. Logo depois se tornariam igrejas evangélicas e lojas de eletrodomésticos. Decoramos frases, posturas e sotaques, nos apaixonamos por personagens e acompanhamos a natural mercantilização do amadorismo das câmeras caseiras. Desvendamos a idiossincrasia ao discordar dos críticos, dos amigos e ao sermos atingidos com assombrosa força por uma ou duas expressões minimalistas. Sentimo-nos, na falta de outra coisa, subversivos só por burlar a classificação etária indicativa.

O cinema realmente parece nos ter dado de tudo: de esboços poéticos sobre o próprio dispositivo a retratos sociais devastadores, nos apegamos às vanguardas, guardamos carinho por certa retaguarda, e, talvez por termos lido os livros, não entendemos algumas das livres adaptações. Traduzimos legendas, vestimos figurinos idênticos, dançamos e choramos com várias trilhas sonoras, revimos obras queridas até perder a conta, montamos uma pilha de lembranças cruéis. Crescemos aos socos e chutes nos jogos de luta do playtime da esquina e acompanhamos a gradativa velocidade que fez de nosso cotidiano pequenos videoclipes. Desistimos de separar o documentário da ficção, admitimos os momentos de opacidade e translucidez, nos acostumamos com o pressuposto de que, independentemente da ordem, estávamos prontos para abdicar de um começo, um meio e um fim. Percebemos a política de pequenos passos, desafiamos a ligação ontológica entre imagem e realidade, experimentamos a fundo a nostalgia pelo que não vivemos e aprendemos a não cansar com a duração de um plano. Passeamos pelo mundo, pelo tempo, pelas faces, recorremos ao discurso cinematográfico para nos salvar em intrépidos debates, canonizamos a animação, unimos metáfora e matéria, criamos um presente feito de memória. Vimo-nos rodeados de um descontrole ao ponto de nos confundirmos: ora estávamos nos identificando com a dura vida de prostitutas francesas, ora sentindo vontade de largar a sobriedade e sair cantando na chuva, ora nos distanciando de regionalismos que, apesar de nos interpelarem, parecem não nos pertencer.

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