Há uma breve passagem em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, livro de cabeceira de sete dentre dez adolescentes nerds, em que as personagens dos civilizados Bernard Marx, o angustiado protagonista, e Lenina, sua acompanhante momentânea, decidem visitar uma reserva de selvagens - espaço remanescente de uma cultura passada, mantido simplesmente a caráter arqueológico, quase como uma lembrança - ou materialidade hipnopédica - dos motivos pelos quais os homens decidiram pela racionalidade extrema a serviço da civilização. A reserva é um lugar cercado por arames elétricos em que animais e homens convivem, onde estes últimos ainda se comportam como vivíparos, constituindo laços familiares, se dedicando aos cultos, aos mitos e à religião, caçando e sendo caçados, completamente distantes (ou ausentes) da distopia sobre o qual o livro se debruça (e, obviamente, ironiza). Só para os desavisados não ficarem boiando, é preciso dizer que Huxley destrincha uma sociedade ultramoderna que conseguiu vencer a infelicidade, não só abdicando da verdade, da arte e controlando minuciosamente a ciência, mas erguendo o fordismo como ideologia dominante e baseando sua hierarquia num método de predestinação social imputada em bebês gerados em laboratório. Cada um é obrigatoriamente para o que nasce, não existem insatisfeitos nos diversos patamares da estrutura social e, para usar dos termos corretos, os indivíduos não mais nascem de barrigas e sim, decantam de frascos em frascos. Além disso, os amantes são conquistados sem flerte, de maneira estritamente pragmática, e trocados regularmente, determinando o fim das vicissitudes do amor, do ciúme e afins, de modo que caso sejam acometidos por uma paixão violenta são expostos a um tratamento de choque.
Todos prosseguem suas vidas levemente dopados, consumindo incessantemente uma pílula sem ressaca chamada soma: o substituto ideal do álcool e do cristianismo, a alienação saudável e sem culpa. Como frutos deste contexto, Bernard e Lenina decidem visitar a reserva: ele buscando uma resposta por estar angustiado numa sociedade perfeita, ela querendo um entretenimento fugaz através da aproximação com o exótico. Após um sucinto city tour no pueblo, ambos são convocados a permanecerem numa praça onde será realizado um ritual do qual desconhecem qualquer princípio. Inicialmente Lenina mostra um tremendo interesse, sente-se bem e acolhida com o som dos tambores, fecha os olhos, imagina o Brave New World ao qual pertence, mas vai mudando a expressão a medida que o ritmo acelera, se tornando mais frenético, carregado de um tom sombrio pouco melodioso. Em seguida aparecem figuras mascaradas e pintadas ao ponto de perderem qualquer semelhança com o corpo humano e o ritual vertiginosamente se distancia do límpido universo da mulher: surgem oferendas religiosas, animais peçonhentos arremessados, um jesus crucificado é erguido, o candomblé reverenciado, os participantes se entregam aos gritos de horror. Por fim, temos a nudez de um jovem rapaz, a dor e devoção que o leva até o sacrifício banhado de sangue em troca da fartura na próxima colheita. Rapidamente, o olhar de ambos forasteiros retorna à moral e parâmetros de seu mundo plastificado e asséptico, todos os gestos e imagens são traduzidos como ofensas à vitória da civilização. Lenina esconde o rosto com as mãos, soluça, estremece: quase sem ar pelo absoluto não costume do sofrer, sente falta de sua dose diária de soma. Havia esquecido as pílulas na pousada.
Pois é, me prolonguei em todo esse epílogo, quase como um saltador que não cansa do trampolim, só para assumir que quando assisti ao curta Nego Fugido, de Cláudio Marques e Marília Hughes me senti arremessado para dentro desta passagem do livro de Huxley, sem perder de vista os inúmeros amigos e documentaristas que direcionam seus olhares curiosos ao mundo que lhes é estranho, exótico, a tudo que para o Eu se metamorfoseia enquanto Outro. Ora se banham num proto-assistencialismo culpa burguesa, ora procuram reinventar ou referendar os cacoetes do registro da alteridade. O filme retrata a interação de dois jovens brancos de classe média, ele é ator, ela carrega uma câmera nas mãos, no povoado de Acupe, no município de Santo Amaro da Purificação no Recôncavo Baiano, durante a apresentação do Nego Fugido, manifestação popular existente desde o século XIX, que procura recriar as lutas da resistência negra contra o regime escravocrata. Uma espécie de teatro de rua de forte repasse histórico oral. O rapaz é impelido a participar da manifestação, pintar o rosto, se misturar ao Outro pedindo dinheiro às sinhás para comprar cartas de alforria. Pelo que consta, a apresentação, apesar de remeter a uma tradição que questiona as consequências da abolição desvinculada de políticas públicas, passou, de fato, por algumas reformulações turísticas amenizantes, o que é plenamente plausível numa sociedade consumista, ainda que os arianos suassunas da vida esperneiem com indignação. Daí são esculpidas duas posturas, a do rapaz que se envolve com a manifestação, de modo a negar sua presença de estrangeiro, problematizando a distância entre o eu e o outro e vislumbrando os limites da interação, interpenetração e falseamento, e a da menina, que afirma seu Eu e firma distância, se assustando com o Outro ao ponto de criar uma repulsa a tudo que acontece a sua frente. Assume, resignada, seu próprio preconceito.
Para além do que já foi esboçado, talvez o aspecto dialógico que tenha se imposto em meus olhos como punctum de Barthes seja o fato do curta ser bastante astuto em seu papel de ficcionalizar a documentação e documentar a ficção. É por este estreito e perigoso caminho que me aparece a reflexão mais importante, afinal, para além das duas personagens, há um terceiro elemento presente, a equipe, que neste caso parece abandonar completamente a velha ilusão cinematográfica do apagamento. No filme, a mediação para com o espectador é regida num interminável direcionamento do campo, do fora de campo e do contracampo virado para a câmera. Todos interligados por uma montagem peculiar: a relação de olhares das personagens ficcionais, dos atores reais do teatro, do espectador e da equipe assumem uma dimensão extremamente complexificada, onde o ritmo de 'cortes' intensos e violentos adensam a instabilidade das posições de cada um, possibilitando pequenas fugas de atitude. Seja como for, ao final, todos parecem se encarar veemente. Resta apenas uma pergunta no enlace desta teia, pois fiquei matutando com qual das posturas das personagens criadas a equipe se identifica mais, qual das duas elege como espaço de fuga primeiro, levando em conta que a escolha da manifestação de Acupe, independentemente das pré-relações, também os coloca como forasteiros. Posso supor uma solução equivocada: a existência em si de Nego Fugido enquanto curtametragem parece nos responder que provavelmente todas as posições são assumidas simultaneamente e de forma autoconsciente, de modo que a fuga da equipe se transmite por meio do olhar desconfiado da garota, da língua vermelha pintada do rapaz, da câmera nervosa, do espectador intrigado. Sem dúvida, todos envolvidos neste projeto deviam saber que "pra filmar aqui tem que ter money, money sinhá!!” e, acredito que, ao final do filme, todos ficamos sabendo também.
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