Não tenho o hábito de sair do cinema e ir direto para o computador escrever sobre o filme que acabei de assistir. Geralmente dou uma respirada, fico um tempo sozinho, fumo um cigarro, olho a cidade, reclamo do trânsito, decido se consigo estabelecer uma relação de quem sou com a obra com a qual me deparei, ponho algumas palavras no rascunho e, por fim, desisto sem peso algum na consciência. Óbvio que o contrário também acontece dependendo do impulso: aconteceu em 2007, quando fui assistir O Cheiro do Ralo, e aconteceu recentemente quando saí da sessão de À Deriva, ambas produções do cineasta brasileiro Heitor Dhália. Terminei não publicando as palavras do último por pura falta de tempo, mestrado, curadoria, procrastinação, mas ainda assim resolvi voltar aqui, dar uma de oroboro e morder o próprio rabo, porque achei, de modo geral, que a crítica 'cabeça' da internet do meu Brasil foi muito cruel com o filme - e constatando que essa esfera já não é tão desprovida de consequências, que a cada dia tende a influenciar mais olhares, estabelecer os diretores-cabeças que sim e os diretores que não, e interferir justamente no percurso cinéfilo que supostamente deveria ser autônomo. De fato, os críticos nada têm a ver com isso. Seus leitores sim: passam a tomar a opinião dos outros como suas antes mesmo de traçarem o percurso básico: assistirem ao filme. Admito, me incomoda tanta pré-disposição e isso também não é a medida utópica de que sejamos verdes na era da informação.
A começar, fui assistir À Deriva partindo da curiosidade em continuar acompanhando uma trajetória obra a obra e, de fato, temendo encontrar um diretor absorvido pela lógica de filmes-mundo, ou seja, dos filmes que já não possuem referência geográfica alguma e que mantém uma relação de produção internacional ao ponto de serem consumidos quase sem ruídos idiossincráticos para além-mar. Heitor Dhália fez algo longe disso: e o fez apesar de ter o risco em mãos, de tomar o âmbito familiar como objeto, tema universal por excelência, e de já saber, como um garoto não ingênuo, da natural repercussão que o filme tomaria fora do país por conta do esquema de produção, financiado pela Universal Pictures, e dos atores Vincent Cassel e Camille Belle. Conseguiu materializar, talvez, o que Krzysztof Kieslowski disse uma vez quando questionado sobre ir para França e perder a vertente do cinema nacional de seu país, a Polônia: não faço filmes poloneses, faço filmes como dor de garganta e dor de garganta as pessoas têm no mundo inteiro. Só que o significado da dor e da garganta se modifica a cada canto.
Particularmente, vejo À Deriva e penso nos coqueiros tortos pela ação do vento, nos objetos da casa de praia, nas cadeiras confortáveis para abrigar o corpo molhado, nas redes e sofás, nas roupas, na pouca roupa e em colocar a mesa no jardim. Vejo tudo isso através de uma fotografia que coloca a luz do dia como uma luz etérea, que pende entre a coloração do nascer e do pôr do sol, despertando um caráter não urbano e nostálgico que nos remete ao 'ser criança' durante a década de oitenta. E o que falar das longas temporadas na praia, das amizades e brigas monçônicas que não duram mais que um verão, de passar o dia inteiro na piscina, comer churrasco, de todo esse universo que nos distancia da arquitetura do cotidiano. Ainda mais quando somos crianças e estamos apenas aprendendo a se portar dentro do cotidiano. Há um pressuposto de paraíso idealizado, mas que habitado por homens, nos conduz, em fraturas, de volta ao mundano.
Nesse cenário, acompanhamos, através dos sentimentos da filha mais velha, a adolescente Filipa, a putrefação do relacionamento de um casal, que além de Filipa, possui dois outros filhos. Antes de mais nada, li algumas críticas que colocaram a interpretação de Laura Neiva quase como se a garota fosse uma tábua lisa sem expressão. Discordo e acho até meio cruel, não fazendo apologia à condescendência, mas porque gosto muito do tom da personagem: somos obrigados a seguir o mundo por seus olhos, olhos truncados, mas para nós, espectadores, não parece ser uma tarefa tão fácil, afinal ela empreende uma estranheza em sua personagem, que não nos aproxima dela, pelo contrário, nos deixa confusos porque nem sempre entendemos suas motivações. A dubiedade de tal comportamento se encaixa perfeitamente no corpo de menina-mulher, na encruzilhada de ser vista como criança graças a cegueira do amor paterno e vista como mulher sensual pelos impulsos dos rapazolas da rua. Filipa não se decide em qual caminho seguir, brinca e sente desejo. A cena final é marcante, spoiler, com ela saindo do barco onde teve sua primeira experiência sexual, sob os olhos do homem que a possuiu, e encontrando o pai, que pega a filha nos braços e a lava na água do mar. É de um poder simbólico imenso. Há um confronto natural entre o conforto dos braços do pai e a curiosidade pela errância juvenil.
Dentro disto, só acho que a escolha de Cauã Reymond para o elenco estremeceu um pouco a seriedade do filme(ao contrário de Débora Bloch que só fortaleceu), porque, sinceramente, ficou parecendo uma viagem de princesa para Laura Neiva: ela, uma desconheida; ele, o galã do momento. Devia ter achado o garanhão no orkut, assim como fez com a garota. Por sinal, Laura Neiva me ganhou a priori por, algo já recorrente no cinema brasileiro contemporâneo, risco e força de usar não-atores como atores pela primeira vez, tirando de seus olhos a grandeza de quem nunca passou por aquilo, algo que não consigo desvencilhar historicamente de Robert Bresson, fazendo com que Pickpocket (França, 1959) bata forte na cabeça. De certa forma, estamos sempre vivendo pela primeira vez, fazendo com que esta escolha, de modo geral, estimule os espectadores a buscarem em suas lembranças uma vida que se faz de momentos: a respiração presa e o frio na barriga de ver/ouvir seus pais brigarem e o peso, fascínio e medo que uma arma nas mãos pode dar. Outro filme que me invadiu durante À Deriva, foi O Mensageiro do Diabo (EUA, 1955), de Charles Laughton, por sustentar o terror basicamente ao brincar com o medo, universal, de perder os pais, a família, medo que lhe acompanha até o dia que acontece, mas que quando criança pode vir a ser uma espécie de quintessência do temor. Durante a infância, escutamos histórias distantes que aconteceram com alguém que não conhecemos e tememos, em urgência, coração disparado, que elas aconteçam conosco no próximo passo.
O filme recria cenas que são fortes para o imaginário de qualquer pessoa, afinal todos vivemos a instância filho, e se por um lado existem situações-limite que nos prendem o ar pela sua dimensão megalomaníaca, vem na cabeça filmes-catástrofe, Heitor se usa de momentos intimistas em dimensão micro que geram a mesma reação. O que para uma criança pode ser mais assustador que ver a mãe chorando? O que pode ser mais terrível que acordar e encontrar a mãe bêbada desmaida no chão da sala? O que pode ser mais incômodo que descobrir que o pai trai a mãe? Dada a recorrência em novelas, e o filme é sim um belo dum melodrama, tais situações podem parecer repetitivas e esvaziadas de fulgor, mas acredito que o cineasta conseguiu o grande feito de desbanalizá-las graças a um tratamento de especial sensibilidade. Enquanto nas narrativas fáceis, tais situações são sensacionalizadas, em À Deriva são simplesmente mostradas, parecendo recolocá-las em seu devido lugar do cotidiano, rememorando a força que existe instrinsecamente. Há uma emersão de memória violenta, fazendo de uma suposta história banal de traição, um drama pesado graças ao olhar pessoal que é impresso na confusão e conduta da personagem principal. Tanto que, spoiler, a sua obsessão pela traição do pai, chegando a espiar várias vezes a transa dele com a amante, nos deixa alheio por um tempo para o fato de que a separação está se consumando não por isso, atitude já aceita pelo casal, mas porque a mãe também traiu e está decida abandonar o lar.
Por fim, só queria reconhecer que pensando na trajetória de Heitor Dhália, pensando em Nina, que não é uma surpresa, mas que reconheço como um bom primeiro filme, e O Cheiro do Ralo, que me mostra uma maturidade artística imensa, ao final de À Deriva fico com a sensação de que temos nele um cineasta pronto, não tateante no que quer e no que consegue realizar, que domina as escolhas, que sabe como serão os cenários a partir de uma rememoração afetiva. Esperarei pelo próximo e 'crítica-cabeça' dizer que "Dhalia queria ter feito um ensaio de Laura Neiva para a Capricho, e não um filme" ou que "Ele faz o mar parecer de água doce, pois só filma o que já foi filtrado" é um pouco demais, não?
A começar, fui assistir À Deriva partindo da curiosidade em continuar acompanhando uma trajetória obra a obra e, de fato, temendo encontrar um diretor absorvido pela lógica de filmes-mundo, ou seja, dos filmes que já não possuem referência geográfica alguma e que mantém uma relação de produção internacional ao ponto de serem consumidos quase sem ruídos idiossincráticos para além-mar. Heitor Dhália fez algo longe disso: e o fez apesar de ter o risco em mãos, de tomar o âmbito familiar como objeto, tema universal por excelência, e de já saber, como um garoto não ingênuo, da natural repercussão que o filme tomaria fora do país por conta do esquema de produção, financiado pela Universal Pictures, e dos atores Vincent Cassel e Camille Belle. Conseguiu materializar, talvez, o que Krzysztof Kieslowski disse uma vez quando questionado sobre ir para França e perder a vertente do cinema nacional de seu país, a Polônia: não faço filmes poloneses, faço filmes como dor de garganta e dor de garganta as pessoas têm no mundo inteiro. Só que o significado da dor e da garganta se modifica a cada canto.
Particularmente, vejo À Deriva e penso nos coqueiros tortos pela ação do vento, nos objetos da casa de praia, nas cadeiras confortáveis para abrigar o corpo molhado, nas redes e sofás, nas roupas, na pouca roupa e em colocar a mesa no jardim. Vejo tudo isso através de uma fotografia que coloca a luz do dia como uma luz etérea, que pende entre a coloração do nascer e do pôr do sol, despertando um caráter não urbano e nostálgico que nos remete ao 'ser criança' durante a década de oitenta. E o que falar das longas temporadas na praia, das amizades e brigas monçônicas que não duram mais que um verão, de passar o dia inteiro na piscina, comer churrasco, de todo esse universo que nos distancia da arquitetura do cotidiano. Ainda mais quando somos crianças e estamos apenas aprendendo a se portar dentro do cotidiano. Há um pressuposto de paraíso idealizado, mas que habitado por homens, nos conduz, em fraturas, de volta ao mundano.
Nesse cenário, acompanhamos, através dos sentimentos da filha mais velha, a adolescente Filipa, a putrefação do relacionamento de um casal, que além de Filipa, possui dois outros filhos. Antes de mais nada, li algumas críticas que colocaram a interpretação de Laura Neiva quase como se a garota fosse uma tábua lisa sem expressão. Discordo e acho até meio cruel, não fazendo apologia à condescendência, mas porque gosto muito do tom da personagem: somos obrigados a seguir o mundo por seus olhos, olhos truncados, mas para nós, espectadores, não parece ser uma tarefa tão fácil, afinal ela empreende uma estranheza em sua personagem, que não nos aproxima dela, pelo contrário, nos deixa confusos porque nem sempre entendemos suas motivações. A dubiedade de tal comportamento se encaixa perfeitamente no corpo de menina-mulher, na encruzilhada de ser vista como criança graças a cegueira do amor paterno e vista como mulher sensual pelos impulsos dos rapazolas da rua. Filipa não se decide em qual caminho seguir, brinca e sente desejo. A cena final é marcante, spoiler, com ela saindo do barco onde teve sua primeira experiência sexual, sob os olhos do homem que a possuiu, e encontrando o pai, que pega a filha nos braços e a lava na água do mar. É de um poder simbólico imenso. Há um confronto natural entre o conforto dos braços do pai e a curiosidade pela errância juvenil.
Dentro disto, só acho que a escolha de Cauã Reymond para o elenco estremeceu um pouco a seriedade do filme(ao contrário de Débora Bloch que só fortaleceu), porque, sinceramente, ficou parecendo uma viagem de princesa para Laura Neiva: ela, uma desconheida; ele, o galã do momento. Devia ter achado o garanhão no orkut, assim como fez com a garota. Por sinal, Laura Neiva me ganhou a priori por, algo já recorrente no cinema brasileiro contemporâneo, risco e força de usar não-atores como atores pela primeira vez, tirando de seus olhos a grandeza de quem nunca passou por aquilo, algo que não consigo desvencilhar historicamente de Robert Bresson, fazendo com que Pickpocket (França, 1959) bata forte na cabeça. De certa forma, estamos sempre vivendo pela primeira vez, fazendo com que esta escolha, de modo geral, estimule os espectadores a buscarem em suas lembranças uma vida que se faz de momentos: a respiração presa e o frio na barriga de ver/ouvir seus pais brigarem e o peso, fascínio e medo que uma arma nas mãos pode dar. Outro filme que me invadiu durante À Deriva, foi O Mensageiro do Diabo (EUA, 1955), de Charles Laughton, por sustentar o terror basicamente ao brincar com o medo, universal, de perder os pais, a família, medo que lhe acompanha até o dia que acontece, mas que quando criança pode vir a ser uma espécie de quintessência do temor. Durante a infância, escutamos histórias distantes que aconteceram com alguém que não conhecemos e tememos, em urgência, coração disparado, que elas aconteçam conosco no próximo passo.
O filme recria cenas que são fortes para o imaginário de qualquer pessoa, afinal todos vivemos a instância filho, e se por um lado existem situações-limite que nos prendem o ar pela sua dimensão megalomaníaca, vem na cabeça filmes-catástrofe, Heitor se usa de momentos intimistas em dimensão micro que geram a mesma reação. O que para uma criança pode ser mais assustador que ver a mãe chorando? O que pode ser mais terrível que acordar e encontrar a mãe bêbada desmaida no chão da sala? O que pode ser mais incômodo que descobrir que o pai trai a mãe? Dada a recorrência em novelas, e o filme é sim um belo dum melodrama, tais situações podem parecer repetitivas e esvaziadas de fulgor, mas acredito que o cineasta conseguiu o grande feito de desbanalizá-las graças a um tratamento de especial sensibilidade. Enquanto nas narrativas fáceis, tais situações são sensacionalizadas, em À Deriva são simplesmente mostradas, parecendo recolocá-las em seu devido lugar do cotidiano, rememorando a força que existe instrinsecamente. Há uma emersão de memória violenta, fazendo de uma suposta história banal de traição, um drama pesado graças ao olhar pessoal que é impresso na confusão e conduta da personagem principal. Tanto que, spoiler, a sua obsessão pela traição do pai, chegando a espiar várias vezes a transa dele com a amante, nos deixa alheio por um tempo para o fato de que a separação está se consumando não por isso, atitude já aceita pelo casal, mas porque a mãe também traiu e está decida abandonar o lar.
Por fim, só queria reconhecer que pensando na trajetória de Heitor Dhália, pensando em Nina, que não é uma surpresa, mas que reconheço como um bom primeiro filme, e O Cheiro do Ralo, que me mostra uma maturidade artística imensa, ao final de À Deriva fico com a sensação de que temos nele um cineasta pronto, não tateante no que quer e no que consegue realizar, que domina as escolhas, que sabe como serão os cenários a partir de uma rememoração afetiva. Esperarei pelo próximo e 'crítica-cabeça' dizer que "Dhalia queria ter feito um ensaio de Laura Neiva para a Capricho, e não um filme" ou que "Ele faz o mar parecer de água doce, pois só filma o que já foi filtrado" é um pouco demais, não?
Um comentário:
As perguntinhas que você coloca no penúltimo parágrafo a respeito de medos infantis são soberbas! Sim, elas estão pelas novelas, mas já estavam em Shakespeare e cia. São temores intrínsecos a todos. Fiquei só com mais vontade de conferir...
Agora, vem cá, sinto que você escreveu o primeiro parágrafo pensando especificamente em alguém que conhecemos... Nem preciso dizer mais nada, rsrsrs.
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