Por uns bons anos, peguei ônibus todo santo dia para ir ao colégio, de forma que cerca de um décimo do meu tempo diário se passava dentro do cdu/várzea centro-subúrbio ou do cdu/várzea subúrbio-centro. Eventualmente pegava um cdu/boa viagem/caxangá na volta. Nunca na ida. Seja como for, ou melhor, sendo otimista, cada viagem devia durar cerca de quarenta minutos, o que dava uma hora e meia contando com a volta. Daí pra fazer o drama, em uma semana permanecia no mínimo 8 horas dentro de um ônibus; em um mês, 32 horas, em um ano, hmmm, digamos que 320 horas para compensar o uso diletante nos meses de dezembro e janeiro. Pois é, são mais de 13 dias inteiros. Entretanto, antes que alguém comece a reclamar da vida, dizendo que mora em São Paulo e passa 78959050950495 horas dentro de um ônibus ou do carro ou sei lá, que enfrenta quilômetros de trânsito, que mora em Piedade e estuda em Olinda, que a rotina é um inferno, comecei esse post só para dizer que passei a maior parte desse meu tempo observando as pessoas: olhava as roupas, os tiques, os gestos, a impaciência, quem levava sacola, quem fingia sono para não carregá-las, a forma de falar, sobre o que falavam, a altura da voz, o corte de cabelo, a cor dos olhos, o sorriso, a grossura da batata da perna, as relações quando estavam em grupo e claro, o corpo por debaixo das roupas. Havia todo um clima de quem tinha acabado de deixar a supervisão familiar e estava aprendendo a lidar com o mundo, num misto de impacto, encantamento e incerteza, mas usando de truques infantis para conseguir se safar.
Eventualmente reconhecia uma ou outra pessoa, que sempre pegava no mesmo horário que eu, muitas das quais nunca troquei uma palavra, só compartilhávamos o mesmo espaço, a mesma efeméride, o mesmo tédio. Conseguia até captar certas recorrências de comportamento nesses casos. Parece besteira, mas nunca consegui lidar direito com a sensação de estar perdendo tempo: mesmo parado, em pé, sentindo cheiro de suor seco misturado ao bafo da cidade, tinha que estar com a cabeça a mil. Nesse sentido, foi graças aos ônibus médio vazios, ou seja, os que davam pra sentar, que pude estudar para o vestibular: durante o último ano do ensino médio, virou um ritual, estudava da hora que entrava até a hora que descia, até porque em casa, lia livros, escrevia umas toscas poesias de amor ou fazia pesquisas - não existia o google, mas existia a barsa - sobre assuntos que me interessavam, mas que não podiam ser tratados como conteúdo de uma prova. Eram puro devaneio pessoal: uma clara obsessão pelas guerras da humanidade aqui, uma nóia em assistir os clássicos do cinema até a metade do século XX ali, um lamento por não ter como me tornar paleontólogo. Meus cadernos da época são verdadeiros tratados sobre a digressão juvenil: frases e mais frases tradutoras de um instante em meio a equações que já não me dizem nada. De qualquer forma, na maior parte do tempo que passava dentro dos ônibus, obviamente não estava estudando coisa alguma, daí me entregava ao deleite da observação: sentava na janela, olhava os transeuntes, escutava as conversas dos outros pela metade, piscava o olho para quem passava em pé nos coletivos que seguiam o caminho contrário. Entre um olhar e outro, entre uma frase pela metade e outra criava micronarrativas, procurando saber para onde as pessoas estavam indo ou de que fim de relacionamento tinha acabado de sair. Todo dia chegava em casa com uma criação mais absurda que a outra, mas não se sintam traídos, não foi assim que comecei a escrever os primeiros contos.
Um comentário:
http://oanguloemmim.blogspot.com/2009/06/o-onibus-e-vida.html
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