Há pouco mais de uma semana, acordei com o rosto molhado e os dedos dos pés doloridos, algo que não me acontecia há vários anos, desde pirralha pra ser sincero, quando sonhei que estava perdido numa mina cheia de placas. Eu andava e espirrava e em cada uma das placas tinha escrito o nome de uma profissão. Depois de longos passeios tomado pela claustrofobia dos corredores estreitos e diante do desmoronamento lógico que me esperava - super na linha 'A Montanha dos Sete Abutres', do Billy Wilder - eis que terminava encontrando uma derradeira maldita placa e no desespero, antes de lê-la, decidia por ela. Nem paleontólogo, nem médico, nem astronauta. Pois é, paleontólogo era a primeira opção na época. 'Assassino' era o que tinha escrito. Acordei com o rosto molhado e os dedos dos pés doloridos. Nem preciso dizer que corri direto pra cama da minha mãe. Acontece que nem o sonho de criança, nem o sonho da semana passada se comparam com uma história que escutei no treinamento do Periódicos Capes. Lá estava eu só querendo saber como fazer a senha para ter acesso gratuito e irrestrito nas mais diversas revistas internacionais, acesso de casa, e não da universidade, quando finalmente a mulher, meio confusa consigo mesma e pouco íntima da interface, explicou mais ou menos o caminho. Ok, entendido, fui pro gmail, orkut, twitter, inutilidade, inutilidade, irrelevância, irrelevância, daí chegaram duas outras pessoas para o treinamento e a instrutora liberou os que já tinham pego o espírito da coisa. Um senhor ao fundo totalmente alheio a tudo que estava sendo dito permaneceu sentado. Eu estava no computador diametralmente oposto ao dele. Foi então que a instrutora resolveu começar com a nova turma pela senha e não pelos blábláblá de ensinar a usar um sistema de busca. Alow, conhecemos o google, pode pular essa parte. Enfim, ela chamou o senhor "professor de biologia" pra se aproximar. Não vou negar que o achei estranho, não só pelos olhos tristes, pelos cabelos desgrenhados, pela pochete feiosa, pela roupa-fiz-figuração-no-elo-perdido-e-não-saí-do-personagem', mas especialmente pelo sotaque estranhíssimo, pois não conseguia identificar de onde vinha, sequer se era nacional ou internacional, ou mesmo se era sotaque de fato ou um problema de dicção. Ok, o senhor era um verdadeiro e legítimo jungle oldman: o que não é problema pra mim, pois apesar de odiar a natureza, as aranhas e os insetos, sou amigo de Mário, rapaz bonito que passou um bom tempo desencontrado no meio da Amazônia.
Voltando ao que nos interessa, a instrutora pediu ao professor que se aproximasse e avisou que para fazer a senha no portal de periódicos era preciso ter o SIGA ativo. Todos enquanto alunos e professores da universidade obviamente tinham SIGA. Explicando bem rápido, além de dar muita dor de cabeça e gerar mil problemas quando você mais precisa, o SIGA é o sistema virtual da UFPE onde todos os alunos fazem a matrícula, conferem seus históricos escolares, notas, grades curriculares, horários; onde também os professores colocam os resultados, os nomes das disciplinas, os horários. Sacaram mais ou menos? Pois é, é isso. Daí o professor falou: "eu não tenho siga". Nessa hora meu ouvido ampliou para além de minha orelha (sem piadas por favor), porque é incompatível que um professor da UFPE seja professor de fato e não tenha SIGA. Daí a instrutora bem boazinha e calminha, boazinha e calminha como geralmente são todas as bibliotecárias, falou que ele precisava falar com o pessoal do departamento pra adiantarem o SIGA dele. Ninguém queria saber mais do treinamento, havia algo de mais importante ali. Daí o professor começou um relato constrangido, afirmando que os professores companheiros de departamento não gostavam dele, que muitos sequer falavam com ele. O constrangimento era dele e a fraqueza do constrangimento nossa. Continuou dizendo que não era bom com computador, internet, que o chefe do departamento simplesmente dava o papel das disciplinas do semestre e, ao final, a secretária pegava o papel com as notas de volta. Tudo sem troca de palavras. Sério, eu fiquei meio emocionado, inclusive por culpa diante de meu olhar primeiro, apesar de que outsider, outsider, essa história pessoal já era demais. Ai de quem pensa na universidade como o templo dos bons modos e da ilustração. A instrutora, claramente passada e não só ela, sem saber se voltava pro treinamento, se enfiava a cabeça no monitor, disse desorientada que ele podia ir na biblioteca, só que logo depois se deu conta que na biblioteca ele nunca que ia fazer o SIGA. De fato, isso só seria resolvido no departamento. Ele achou que ela não tinha entendido e repetiu a história, enfatizando que não saberia fazer isso sozinho, que não era bom de computador, que não tinha computador em casa. A mulher querendo quebrar o gelo falou que também não tinha, que usava o do sobrinho. Foi a deixa: ele começou a ficar meio nervoso e disse que não podia pedir a filha até porque a filha tinha asco dele. Eu fiquei meio em estado de choque. Todos na sala. Depois do silêncio sepulcral, ele soltou a máxima do dia: "Ninguém fala comigo lá. É que eu sou leproso. Quando se tem lepra, é foda. Eu tenho um fedor que faz com que as pessoas não se aproximem de mim. Eu só posso feder muito. Muito mesmo. Desde que eu cheguei nessa cidade há vinte anos, eu nao paro de feder". Não se enganem, REALMENTE o fedor era uma metáfora. A mulher sem saber o que fazer mandou ele procurar o reitor, só o reitor poderia resolver o caso. Momento climãão instaurado e eu como um bom covarde, antes que ele continuasse a história, fugi da sala pensando como meu dia-a-dia só faz me confirmar que o mundo é um grande lixão cheio de urubus. Voltei pra casa péssimo. Só melhorou um pouco quando passei no laguinho e vi duas beldades tirando a camisa e fazendo contorcionismo na grama. Ainda bem que consigo curar tristeza profunda com um circo de corpos quaisquer.
Um comentário:
Você é um monstro.
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