Antes de mais nada e fazendo logo a meia-culpa, queria deixar claro que Jean Rouch é um cineasta que me instiga não apenas em assuntos cinematográficos, não apenas na discussão-punheta da forma, dos planos, da duração dos planos, mas num patamar mais profundo, existencial mesmo, ferindo minhas projeções de felicidade e autorepresentação. Não tenho como negar que Os Mestres Loucos, A Pirâmide Humana, Jaguar, Eu, um Negro e especialmente Crônica de um Verão são danadamente culpados nessa empreitada, mas fiquei realmente incomodado depois de assistir A Caça ao Leão com Arco. Diferentemente do que comentou o curador da mostra, não senti a mínima vontade de mostrar o filme aos meus filhos, sei que dificilmente eles, ou as minhas sobrinhas que é o mais próximo que tenho disso, terminariam eufóricos, com vontade de dançar (?!). Seja aos 3, 7 ou 10 anos e, infelizmente, preciso fazer um adendo a todos que apresentam filmes: favor não descrever, soltar spoilers ou contar o final antes da sessão, favor se restringir ao ano, diretor e quem sabe uma discreta sinopse / comentário, alguns espectadores, me incluo entre eles, detestam essa clareza de significado que o especialista procura dar ao enigma por vir. Seja como for, achei a proposta do filme uma farsa, não uma farsa no sentido do documentário em si, do dispositivo ou intervenção, não uma farsa autoconsciente que brinca com as crenças do espectador, que problematiza a praxis do documentarista, nada de muito refinado, mas uma farsa que parece enganar o próprio realizador como um etnógrafo deslumbrado com pouco, daqueles que vestem sua indumentária desbravador e pela primeira vez tem contato com um arco fora do contexto dos campos de treinamento olímpico de seu país.
O filme de Jean Rouch não trata de uma fábula, ainda que tente se vender assim, sobre o caráter do duelo justo, dos combatentes que se enfrentam em condições semelhantes, se respeitam, se assimilam, se rodeiam, seguem as mesmas regras e ocupam o mesmo espaço, afincando ao duelo sua dimensão histórica, das sociedades tradicionais às industriais, do âmbito público ao privado. A Caça ao Leão com Arco finge uma autenticidade, ou melhor, uma exclusividade ritual que só se torna plena na cabeça de quem pretende fechar os olhos para o mundo e elevar a própria vista e experiência, afinal o objeto aqui é o duelo injusto, duelo da desigualdade, que assim sendo, deixa de ser duelo e se torna outra coisa. Aliás, no início da aventura, Rouch comenta que existem vários tipos de caçada, mas que elas podem ser divididas basicamente em dois tipos: 1. as que usam armadilhas e 2. outra em que um caçador, o mais corajoso, vai sozinho para a savana com apenas três flechas durante três dias. Portanto, ao acompanhar apenas o primeiro tipo, digo com firmeza que para começo de conversa, o filme não deveria se chamar A Caça ao Leão com Arco, mas A Caça ao Leão com Armadilha, porque o que vemos é um embate desproporcional: dezenas de homens em busca do felino espalham armadilhas, aquelas armadilhas de ferro que o animal pisa e tem a perna quebrada e presa, para no outro dia chegarem com o animal adulto / macho / fêmea / filhote completamente debilitado, praticamente imóvel, praticamente morto, e atirarem algumas fechas cheias de veneno. Desculpa, mas o arco é meramente um adorno tribal, superestimado pela câmera, pelo realizador, pelos espectadores e esse papo de 'aproveitem para ver os últimos momentos de um ritual que vai desaparecer', não convence.
Se o filme é uma fábula que procura dar destaque ao homem nômade de algum confim da África que mata o animal por sobrevivência, para se alimentar e para punir pelos ataques ao gado, que mistura racionalidade e misticismo no respeito e integração com a natureza, que martela a hierarquia e os ritos do grupo, tenho de dizer que a moral que me passa não é muito edificante - e isso não é uma cobrança. Em primeiro lugar, bateu a sensação de que ser desleal vale desde que depois da deslealdade, soltemos uns cantos para a morte do inimigo, façamos uma dancinha, um gaway-gawey e agradeçamos. Não sou do tipo que desenvolveu problemas com a forma com que industrializamos a morte dos animais que comemos e consumimos, matar com uma armadilha / flecha ou comprar no mercado, desfiado, pré-cozido, não faz tanta diferença para mim, não me sinto culpado, sou carnívoro, não vou sentir pena de uma galinha porque ela viveu numa gaiola antes de chegar a minha mesa. De qualquer forma, se eu fizer uma oração antes da refeição, fica tudo certo. Voltando ao filme, o realizador suprime um estatuto ontológico óbvio de sobrevivência do ser humano só para justificar seu deslumbramento raso com o modo de viver e se integrar africano. Parece até o conto da carochinha do bom selvagem que tem sido resignificado ad infinitum desde Rousseau. Agora, de fato, a cereja do bolo é a narração exagerada de Rouch, ele simplesmente não para de falar, ok é uma fábula, precisa ser mastigado, mas ele explica tanto, intermedia tanto, que parece isolar e alijar cada vez mais os caçadores enquanto pessoas, os elevando artificialmente a posição de personagens talhados. Pouca importa a caçada, pouco importam os caçadores, o leão, pouco importa a ética do duelo, o que importa são as impressões deslumbradas de um branco velho etnógrafo francês que tem uma puta tara na pele negra. Lembrei de Santiago, não a reflexão sobre o material bruto, mas o filme que o João Moreira Salles não fez.
Um comentário:
Eduardo Galeano um dia encontrou um cartaz em Chicago onde tinha um provérbio africano:até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçada continuarão glorificando o caçador.
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