A TV Brasil tem me surpreendido para o bem. Primeiro teve um dia que eu tava lá de bobeira no sofá de casa e de repente passou "O menino da calça branca", de 1961, o primeiro curta do Sérgio Ricardo, que integra, junto a três outros curtas, um projeto chamado "Quatro contra o mundo". Não vi os outros e vai ser difícil vê-los - nunca tinha sequer escutado falar - mas sei que esse Sérgio Ricardo, que foi homenageado pelo Festival do Filme Livre desse ano, é mais conhecido por sua música que por seu trabalho no cinema, especialmente porque ele foi responsável pela trilha sonora do cânone "Deus e o Diabo na Terra do Sol", do Glauber Rocha. O Sérgio Ricardo é um cara cheio do préstigio e estou aqui só pra aumentar um pouco esse prestígio, porque desde Muro não ficava tão abismado com um curta - ambos me tocaram da forma profunda o suficiente para não saírem da minha cabeça por muito tempo ou talvez pra sempre. Sem contar que vale dizer que costumo retomar momentaneamente a minha fé na humanidade quando fico emocionado com algo sincero que passa na televisão e não é a matéria de transplante de órgãos do Fantástico ou alguma propaganda fofa e cretina da coca cola. Depois essa sensação passa e eu volto a ser o velho pessimista de sempre. Sobre o curta, não posso ignorar que a fotografia em preto e branco é linda, talvez uma das mais bonitas que eu tenha visto e não a toa: a maioria dos curtas brasileiros do início da década de 60, Aruanda, por exemplo, possuem uma fotografia de uma luz muito própria, como se saída do hipersaturado Rio 40 Graus em direção ao suposto naturalismo controlado do Cinema Novo. Não dá pra saber direito se o punctum é justamente o controle ou descontrole. Por sinal, o diretor de fotografia, Dib Lufti - irmão do Sérgio Ricardo, viveu esse processo muito bem, trabalhou com o Eduardo Coutinho no início da carreira do documentarista, foi operador de câmera em Terra em Transe, trabalhou em inúmeros filmes do Arnaldo Jabor, Nelson Pereira dos Santos, entre outros, apesar de hoje participar de iniciativas toscas de pretensão, direção e interpretação duvidáveis como é Juventude, do Domingos de Oliveira. Todo mundo envelhece um dia e não estou falando dos anos concretos. Manoel de Oliveira, aquele jovem, que o diga.
Mas voltando rapidamente ao "Menino da Calça Branca", além da fotografia, fiquei especialmente comovido com a espontaneidade do garoto, cujas andanças, expressões e brincadeiras nas ruas, acompanhada e registrada por uma segunda andança, a da câmera, nem sempre na mesma direção, me transportou completamente a um imaginário da infância e não necessariamente da minha infância. Senti o onírico, mas não o nostálgico - que, na verdade, seria um nostálgico inventado, daqueles quando nós, na linha jovens de menos de 30 anos, buscamos um 1968 no baú de lembranças. Pois é, nesse caso não rolou identificação: nem de fato, nem inventada. Talvez justamente esse distanciamento entre a minha infância e a infância do garoto tenha facilitado e inocentado minha entrada na diegese proposta, sem que eu, interferisse com a minha própria diegese. Sem contar que ver o Ziraldo de surpresa na tela me encheu de uma alegria inexplicável. É isso aí, inexplicável. Pra não dizer que não falei das sinopses, basicamente a história se foca em um menino do morro que ganha de natal uma calça branca - algo que parecia esperar há tempos - e toma aquele presente como uma transformação imediata em sua vida de menino do morro. Eis que então desce ao asfalto, todo cuidadoso para não se melar e imita o mundo dos adultos de calças brancas: os gestos, a forma de andar, de se portar e estar no mundo. A narrativa é muito simples e fofa - e sei que essas palavras não seriam as ideais - mas a escolha de colocar um final triste funciona muito como o despertar de um sonho por um soco na porta do quarto: a bola bate na lama, a lama bate na calça branca e o menino volta pro morro. Daí pra ficar emotivo é um passo, especialmente pela percepção da influência do Sérgio Ricardo enquanto compositor sobre o Sérgio Ricardo diretor, algo que dita um ritmo onde o visual parece seguir uma direção auditiva. Obviamente esse processo ganha força e se aperfeiçoa através da edição realizada pelo mestre Nelson Pereira dos Santos. Acho que não é clichê dizer que essa sua criação audiovisual - e imagino que as outras também dada sua trajetória - se interliga simbioticamente com a criação musical. Dessa forma, nem preciso dizer que existe a música "o menino da calça branca". O curta recebeu o prêmio 'Berimbau de prata' no I Festival de Cinema da Bahia em 1962. Berimbau de prata, minha gente?
o_O
A Bahia às vezes me mata de vergonha.
Daí terminou o filme e vi na propaganda que na sequência ia passar Serras da Desordem, do Andrea Tonacci, uma das produções brasileiras de maior provocação estética sobre o que é, não é, não é mais, foi e será a linguagem audiovisual, especialmente do documentário. Se não tivesse com tanto sono, topava na boa pela terceira vez.
Mas voltando rapidamente ao "Menino da Calça Branca", além da fotografia, fiquei especialmente comovido com a espontaneidade do garoto, cujas andanças, expressões e brincadeiras nas ruas, acompanhada e registrada por uma segunda andança, a da câmera, nem sempre na mesma direção, me transportou completamente a um imaginário da infância e não necessariamente da minha infância. Senti o onírico, mas não o nostálgico - que, na verdade, seria um nostálgico inventado, daqueles quando nós, na linha jovens de menos de 30 anos, buscamos um 1968 no baú de lembranças. Pois é, nesse caso não rolou identificação: nem de fato, nem inventada. Talvez justamente esse distanciamento entre a minha infância e a infância do garoto tenha facilitado e inocentado minha entrada na diegese proposta, sem que eu, interferisse com a minha própria diegese. Sem contar que ver o Ziraldo de surpresa na tela me encheu de uma alegria inexplicável. É isso aí, inexplicável. Pra não dizer que não falei das sinopses, basicamente a história se foca em um menino do morro que ganha de natal uma calça branca - algo que parecia esperar há tempos - e toma aquele presente como uma transformação imediata em sua vida de menino do morro. Eis que então desce ao asfalto, todo cuidadoso para não se melar e imita o mundo dos adultos de calças brancas: os gestos, a forma de andar, de se portar e estar no mundo. A narrativa é muito simples e fofa - e sei que essas palavras não seriam as ideais - mas a escolha de colocar um final triste funciona muito como o despertar de um sonho por um soco na porta do quarto: a bola bate na lama, a lama bate na calça branca e o menino volta pro morro. Daí pra ficar emotivo é um passo, especialmente pela percepção da influência do Sérgio Ricardo enquanto compositor sobre o Sérgio Ricardo diretor, algo que dita um ritmo onde o visual parece seguir uma direção auditiva. Obviamente esse processo ganha força e se aperfeiçoa através da edição realizada pelo mestre Nelson Pereira dos Santos. Acho que não é clichê dizer que essa sua criação audiovisual - e imagino que as outras também dada sua trajetória - se interliga simbioticamente com a criação musical. Dessa forma, nem preciso dizer que existe a música "o menino da calça branca". O curta recebeu o prêmio 'Berimbau de prata' no I Festival de Cinema da Bahia em 1962. Berimbau de prata, minha gente?
o_O
A Bahia às vezes me mata de vergonha.
Daí terminou o filme e vi na propaganda que na sequência ia passar Serras da Desordem, do Andrea Tonacci, uma das produções brasileiras de maior provocação estética sobre o que é, não é, não é mais, foi e será a linguagem audiovisual, especialmente do documentário. Se não tivesse com tanto sono, topava na boa pela terceira vez.
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