sábado, 20 de março de 2004

Let it roll, all night long!

Sentado numa grama com duas outras pessoas e suas costas tatuadas. Minha bolsa era velha e tinha um furo por onde deixava sair minhas fumaças e por onde costumava colocar a vergonha de meus pensamentos engraçados. Ela usava um colar de sementes vermelhas que tocava o umbigo e de tão misterioso, o seu próprio olhar, olhos grandes e pretos, desenhava formas e mais formas na geometria do irrecusável. Assanhava meus cabelos para que ficassem cada vez mais assanhados, rasgava minhas calças para que ficassem cada vez mais rasgadas. Cobria-me de um mundo mais antigo para dar alguma razão a minha velha barba. Vibrávamos pelo ar fresco, pelos pés descalços e nos agarrávamos a leveza de colocar um violão na mão, notas perdidas, enquanto os instrumentos indianos não terminavam de ser afinados. Estávamos ali por causa de uma banda e entrávamos com nosso samba de qualquer maneira, nos dias de ira e nos dias de cerveja, permanecendo fora de ritmo mesmo na chuva fina que irrompe de nuvens solitárias nos dias de sol. O casamento da raposa comentaria um senhor mais velho inundado da pequena sabedoria do cotidiano.

Lúcia parecia nos conduzir a cada movimento seu, os cabelos negros ondulados, presos e soltos, sua silhueta sobrepondo o céu azul e a velha flor amarela presa na orelha. Queríamos ser os poetas, mas não passávamos dos carteiros que não sabem ler direito e distorcem cada variante a sua própria maneira. Pela primeira vez ela estava na roda. Rimos e também quase choramos ao relermos os garranchos em papéis soltos dos abandonados cadernos de matemática. Éramos doces e nem tanto. As palavras dela eram as mais suaves, se materializavam em letras de convite de casamento sem afetação, tocavam a minha pele como uma mão que percorre todo o corpo até posicionar o rosto para um longo beijo na boca. As palavras dele só o próprio conseguiria ler, me afetava como os abraços fortes nos momentos que não temos força para ficar de pé. Eram também o sussurro de uma alma ébria para além do teor alcoólico. A gradação da gagueira que acompanhava as minhas palavras logo se tornavam lapsos do que eu nunca vi, se mostravam através de metáforas e mais metáforas que nem eu entendia e davam um ar de estranheza e beleza em sua última sílaba. O fato era único: nos amávamos muito.

Logo acendemos o cigarro que todos fumavam em busca do olhar vermelho e do paraíso de sombras, ela sorriu mais uma vez sem motivo e eu me levantei com uma maçã presa nas mãos. Roadhouse blues no volume máximo. Sentia cada lacuna da minha mente, cada desejo do meu sexo em meio as centenas de frutas esparradas pela grama que ficava mais verde a cada dentada. Ela se levantou com as uvas enroscadas em seu pescoço e sua mão erguia um incenso de alguma erva não muito convencional. A fumaça dançava entre nossas bocas. Esbanjávamos nossa felicidade em bolinhas de sabão que tocavam de leve as folhas mais altas dos eucaliptos. Lucia era a mais bonita e eu a amava imaginando ser impossível amar novamente. Sua dança, sua saia, seus seios e minha boca. Tudo em uma nota só. Tudo em um único toque seguido de dez mil. Vicente tinha ainda o cigarro em suas mãos e o seu chapéu de palha estava tão velho que era o símbolo de seu primeiro porre. Primeiro de vários outros. Passamos a vida brindando.

Aprendemos a cair no chão sem abalar a tranquilidade, a rir sem soar como indiferença e a chorar quando não havia outra coisa a se fazer. Nunca em minha presença aquele garoto iria perder seu chapéu de palha. Estávamos nós três dançando. Eu, a minha musa e o meu irmão. Tínhamos a certeza de que não faltava mais nada. Pouca vezes na vida conseguiram pensar nisso novamente. Sequer lembravam como estavam se ausentando dos rumos coletivos, pois naqueles instantes caíam no completo e delicioso mundo da autorerferência sem peso algum. O violão estava parado e minha respiração ofegante. A voz de Jim estava tão alta e ainda mais forte. Eu estava fora do meu conhecer e dentro de um mundo muito maior. O tapete persa que tinha roubado da casa dos meus pais servia de mesa, de cama, servia-se por si só. Sair do quarto de sempre e ir ao espetáculo da vida e do nunca era a peça que eu criara para ser o ator principal. Sorri e fuma as estrelas enquanto se equilibra. Come uma romã e sorri para beijar. Dança a chuva e sorri o além dos teus olhos. Essa era uma história curta e uma história e tanto.

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